Marta e Formiga adentraram a sala para a entrevista após a desclassificação. Cabeças erguidas. Estavam com aquele semblante de desfecho que dói. Cara de quem tem saudade do que não se viveu o que se desejou tão intensa e verdadeiramente. Sentaram-se. Formiga abriu a garrafinha de água à sua frente, pegou um copo e serviu Marta, que lhe agradeceu.
A assessora de imprensa abriu a coletiva com Augusto Garcia, da TV Brasil Paralelo. Levantou-se um sujeito de braços magros num corpo de gordo, pele avermelhada rosa, de quem parecia viver embriagado, cabelos pintados de caju e queixo de burro. “São duas perguntas em uma: ao que vocês atribuem o fracasso do futebol feminino brasileiro, mais uma vez, nos Jogos Olímpicos, e em particular da geração de vocês?”. Pergunta despeitada, sem empatia, sem vaselina, sem boa noite, sem brasilidade. Notou-se, em sua lapela, sobre a camisa verde oliva, um botom verde-amarelo. Ele permaneceu em pé, quando deveria sentar-se. Por dentro, vangloriava-se de ter escolhido fazer a pergunta daquela forma e com aquela entonação. “Quero ver essas aí saírem dessa”, ruminou.
Elas se entreolharam. Passou um filme. O chão batido de terra do barraco, os pés descalços, a descoberta da brincadeira de jogar bola, a luta para serem aceitas no “jogo dos meninos”, a pobreza, a saída precoce de casa para correr atrás do sonho, a incerteza, a saudade, a falta de apoio, o assédio, a vida debaixo da arquibancada, a primeira convocação, os muitos anos de salários minguados, o primeiro pagamento digno, ainda que tardio, e a última e querida Olímpiada, dentre tantas disputadas.
Formiga rompeu o silêncio: “O duro de a gente ter vencido cinco copas do mundo, ainda que a última tenha sido há quase 20 anos, é de que toda vez que uma camisa amarela entra em campo, a decepção é grande se não sair vitoriosa. Ora, menos! Não estamos sozinhos nessa seara. Não somos os donos do campinho. Ainda mais soberba é a atitude de se avaliar o futebol feminino sob essa mesma perspectiva. Estamos, como modalidade, atrasadas, porque mentes atrasadas nos conduziram. Mas começamos a botar a cabeça para fora, a aquecer o mercado interno, a competir com os países de primeiro mundo. Você mencionou fracasso. Eu não vejo assim. Perdemos nos pênaltis para uma seleção competitiva. Por isso, não avançamos. Era, desde o pontapé inicial, uma das possibilidades, não? Ao contrário, entendo que saímos fortalecidas, que deixamos, inclusive, um legado. Gente como eu e a Marta, que é a “Rainha” desse esporte, fizemos algo notável com o pouco que nos deram. Portanto, ensinamos que é possível, quando se quer pra valer algo, sair do anonimato social, resistir, persistir, triunfar, orgulhar-se.
Augusto Garcia foi ficando avermelhado rosa-caju-oliva. Os que estavam próximos juram que ele, antes de se sentar, borrou as calças, merdando-se, muito provavelmente como resultado de um peido que saiu pela culatra. Sua mandíbula ficou mais sobressalente e assumiu, na frente de todos, a forma de um ruminante.
A assessoria interveio. “Vamos para a próxima pergunta, de Constantino Alexandre Nunes, da Jovem Klan”. Nunes era conhecido pelo seu bafo de dragão medieval, por mentir compulsivamente, por distorcer as ideias de seus interlocutores e por destilar seu veneno por todo canto, sobre tudo o que se movia: idosos, crianças, mulheres, animais, insetos, plantas, átomos. “Minha pergunta é para a Marta. Você não avalia que, pela preparação que tiveram, pelo investimento feito, ficaram devendo para o povo brasileiro?” A “Rainha”, que se tornara a única mulher a marcar gols em cinco Olimpíadas seguidas, tomou mais um gole d’água. “Deixem eu contar algo para todos vocês nesta sala e também para os que nos assistem: somos um país de devedores. Devemos estruturalmente, sobretudo, para gente como eu e a Formiga, que somos mulheres e, ainda mais, negras. Se alguém discorda, ou é cínico ou é ignorante ou não entendeu nada. Não consigo mensurar, portanto, a extraordinariedade de nossas carreiras e do impacto da nossa geração sobre as meninas brasileiras pobres, quase todas pretas. Somos mulheres-negras-futebolistas num país dominado por homens brancos. Tínhamos, portanto, as portas fechadas, tudo para dar errado e aqui estamos. O futebol feminino não deve. A seleção não deve. A nossa geração não deve. O país quem deve pra gente como a gente. E, infelizmente, não quer quitar a sua dívida.
Conta-se que, nesse dia, Augusto Garcia e Constantino Alexandre Nunes tiveram pesadelos horríveis, horas a fio, em que eram picados no cu por uma abelha rainha e uma formiga indomáveis.