Três anos atrás, Kiyoshi Ohno veio ao Brasil atrás de artistas que tivessem agenda disponível para fazer temporada de um mês, de quinta a domingo, durante a Olimpíada no Bar do Tom, de propriedade dele, em Tóquio, ponto de encontro de japoneses apaixonados por bossa nova.
Na época, Marina e eu formávamos a dupla David Muniz e Marina Cerqueira e cantávamos às quintas, no Ilustrada, o bar mais badalado de Campinas, e nosso repertório de música brasileira pop tinha algumas bossas.
Na atmosfera baixo astral que abate os bares no fim de noite, eu adorava cantar, à meia-luz, abusando dos vibratos e segurando ao máximo o som das últimas palavras de cada verso na vã tentativa de imitar Sarah Vaughan interpretando Dindi.
Em uma daquelas quintas, por volta das três da manhã, concentrado em cantar a música do Jobim e Aloisio de Oliveira, nem percebi que restava apenas um cliente no bar de mesas vazias. Dei o último acorde, me desfiz da guitarra e olhei na direção do homem sentado a um canto escuro bebendo caipirinha de cabeça baixa. Ele se levantou e veio em minha direção, rosto banhado em lágrimas. Mãos postas, curvou várias vezes a cabeça no gesto de agradecimento característico dos japoneses.
– Meu nome é Kiyoshi Ohno. Desculpe-me a emoção; adoro essa música. Quero vocês tocando no meu bar durante os Jogos Olímpicos.
No começo de 2020, enquanto Marina e eu ensaiámos vasto repertório de bossa nova, soubemos que o evento tinha sido adiado para 2021. Pouco tempo depois, o multi-instrumentista japonês Isao Tanaka passou pelo Brasil (e esteve em Campinas) a fim de selecionar uma brasileira para compor o coral internacional de cantoras de todos os continentes que se apresentariam na abertura dos Jogos.
Marina decidiu participar da audição, levando em conta que estaríamos em Tóquio, e eu a incentivei. No dia marcado, ela ficou incomunicável por mais de dez horas – eventos dessa natureza costumam ser demorados, ponderei. Era noite alta, quando Marina entrou pela sala do apartamento, exausta, rosto febril, mãos trêmulas e à beira de um ataque de choro.
– O que foi?, perguntei preocupado.
Desesperado, na verdade. Ela nem respondeu. Chorou, como nós dizíamos na antiga redação do Diário do Povo, aos cântaros, e sem conseguir articular uma palavra sequer. Quando iniciou o estancamento do choro, balbuciou repetidas vezes a mesma frase:
– Me desculpe, me desculpe…
Ela tinha se apaixonado por Isao Tanaka. Foi uma das primeiras a se apresentar, ele a escolheu e dispensou as demais candidatas. Todas as horas seguinte não foram dedicadas ao canto, mas ao prazer de se conhecerem e de estar juntos. O músico japonês arrebatou Marina e foi arrebatado por ela. Três dias depois ela se foi para Tóquio. Em princípio, para sempre.
Fiquei tão atarantado nos poucos dias que antecederam a partida que não consigo me lembrar direito quais foram os movimentos dela. O apartamento havia se transformado em um labirinto, no qual me perdi. Buscava em vão por Marina e tudo o que eu encontrava era a sombra dela que passava pelo quarto, no corredor, na sala, esvaía-se pela porta da frente, desaparecia e retornava sem que eu a pudesse tocá-la, ou falar com ela, tentar convencê-la a não me deixar.
Porém, Marina só pensava em partir e, no meio da noite do terceiro dia a sombra dela passou por mim pela última vez. Arrastando malas a vi observando o nosso quarto, o corredor, a cozinha, deteve-se longamente na sala – ela partia dividida (assim entendi), como se quisesse ficar. Mas se foi encantada por um japonês, com a desculpa de cantar na abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Kiyoshi Ohno tentou me convencer a fazer, sozinho, a temporada de shows em Tóquio, mas não tive coragem, pois imaginei que, enquanto eu estivesse cantando ao vivo no Bar do Tom, Marina estaria ao vivo, no estádio, cantando na abertura dos jogos. E eu teria de trocar a tentativa de imitar Sarah Vaughan na bossa nova Dindi por um blues de Billie Holyday.
Tempos depois, soube que Isao Tanaka foi afastado da organização da cerimônia de abertura. Portanto, na próxima sexta, dia 23, quando serão oficialmente inaugurados os Jogos Olímpicos, não verei Marina pela TV se apresentando ao vivo em Tóquio, assim como eu não estarei ao vivo no Bar do Tom.
Seria natural se, agora, eu estivesse refugiado no quarto, sozinho, à meia-luz, cantando sem ninguém para me ouvir, como nas madrugadas dos bares: “Se um dia você for embora/ me leva contigo”. Mas não quero esse desfecho. Baixo astral tem um quê de mau gosto, odor amargo de passado. E passado não serve para nada. E quem sabe sobre futuro? Melhor é viver o hoje.
E como ainda não está seguro sair de casa, vou fazer uma live. “David Muniz – Live em Campinas”. E vou cantar Dindi tentando imitar Gal Costa. Já viram a versão dela, de 1986 – não consegui identificar onde? Aquela mulher linda com flores nos exuberantes cabelos negros crespos, sorriso no rosto cantando com voz límpida, afinadíssima: “Céu, tão grande é o céu/ e bandos de nuvens que passam ligeiras/ pra onde elas vão/ ah, eu não sei, não sei”.
Eu também não sei para onde vão as nuvens. Tampouco sei muito bem para onde vou eu. O mundo anda meio estranho, estamos todos um tanto perdidos nos labirintos dos nossos apartamentos.
Mas teremos as Olimpíadas, competições criadas para serem congraçamento de nações. E decidi que vou torcer pelos melhores, pois pensar no melhor não deixa de ser bom presságio. É assim cheio de bons presságios que espero acompanhar os Jogos. Depois? Bem, depois, eu verei para onde vou.
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João Nunes
João Nunes é formado em teologia e jornalismo. É integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema e autor do livro Paulínia – Uma História de Cinema (Paco Editorial, 2019). Atualmente assina a coluna Sala de Cinema no site horacampinas.com.br.
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