Achille Mbembe já usou o termo “racismo viral” ao invés de racismo estrutural. Essa noção de estrutural, que alguns afirmam ter raiz marxista, mas sem nunca terem encontrado exatamente onde, ou a terem claramente identificado em obras do revolucionário da dialética, talvez esteja, de qualquer modo, “obsoleta”, ou melhor, inadequada. Somos pós-estruturalistas, somos virais, viralizadores e viralizados pelas redes e pelos vírus biopoliticosociais que nos perseguem e que perseguimos. Assim posto, um indício da machomisoginia viral é o comportamento de apontar a beleza feminina descontextualizada, isto é, de focar na beleza mais literalmente física, ou então isolar a beleza de outros atributos que sejam qualificados no que se refere aos campos, por exemplo, intelectuais e profissionais da mulher. Não trata de objetificação (e suspendamos uma discussão freudista), mas de isolamento de um atributo, isolamento que parcializa e empobrece a concepção do ser humano (mirado no gênero feminino). Ao menos é assim que ocorre muitas vezes.
Correndo o risco, mas sabendo que dele consigo me desviar, tenho ficado profundamente impressionado com a beleza de muitas atletas olímpicas. Jamaicanas, norte-americanas, espanholas, alemãs, japonesas… E brasileiras. Dessas últimas, Letícia Bufoni sobressai como verdadeira musa do skate. Não é do meu feitio deslindar polêmicas completamente imbecilizadas típicas de celebridades com as quais cada vez mais tem se envolvido em nome de mídia, como o faz toda celebridade, também sem deixar de notar que tem sido alvo de, enfim, machismo e julgamentos injustos quanto à qualidade esportiva. Apesar da atuação, digamos, decepcionante para quem a conhece ou para quem tanta expectativa depositava, uma atleta da qualidade dela não vai às Olimpíadas somente para exibir a beleza e fazer gracejo para as câmeras. Ao menos em princípio. Perante todo esse quadro, senti uma espécie de melancolia e pude, provavelmente instigado por meu próprio estado, perceber que a beleza bufônica (e aqui malabarismo linguisticamente com seu sobrenome e com sua imagem de skater zoeira e alegre) é uma beleza, paradoxalmente, triste.
Poe é precursor da associação da beleza e da melancolia. Verifiquemos dois excertos, um extraído do “Princípio Poético”, outro da “Filosofia da Composição”, respectivamente: “[…] permiti-me lembrar-vos que (como ou porquê, não o sabemos) […] certa tonalidade de tristeza liga-se inseparavelmente a todas as mais elevadas manifestações da verdadeira Beleza.” (POE, 1999, p. 86). “Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos.” (POE, 1999, p. 105). A beleza melancólica de Letícia é a que misteriosamente tenta tergiversar, manobrar, ilusoriamente se preencher de alegria, de vivacidade, dos sorrisos mais solares. Para Baudelaire, o mistério é uma característica bela e, apesar de a alegria ser compatível com a beleza, é um de seus enfeites mais vulgares, sendo, por outro lado, a melancolia uma de suas acompanhantes mais ilustres, estabelecendo como impossível conceber beleza sem um toque de desdita.
Letícia Bufoni é um mistério, apesar da exibição, uma musa polêmica e midiática, para o bem e para o mal, atualmente envolvida por algum tipo de desdita meio indefinida, que, espero, em nome da beleza, que não se esgote em mero enigma decifrado. Talvez sua capacidade de encantamento esteja nisso, tanto quanto em seu estilo de skate street e nas curvas de seu corpo impressionante, até bem acima da média do biopolitics olympic style. E apesar da pecha de egocêntrica por causa de suas rusgas infantis com atleta de mesma equipe e com casal de surfista e modelo tão infantil quanto os conflitos, foi a atleta que simplesmente disse que ela, que foi inspiração para sua companheira de profissão, é hoje inspirada pela mesma colega, pela Fadinha, uma menina de 13 anos que sempre apoiou e que hoje desbanca todas as lendas experientes. Mistério: egocentrismo e humildade, rainha e decepção, beleza e recalcada melancolia, escôndita desdita. Mas ainda é mais. O mistério é talvez maior, e o encanto também.
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Carlos Eduardo Marcos Bonfá
Carlos Eduardo Marcos Bonfá nasceu em Socorro/SP em 1984. É professor de literatura, Leitura e Produção de Texto em EFII, EM e em faculdade do setor privado, com doutorado (e estágio de pós-doutoramento) em Estudos Literários pela UNESP. É colaborador da revista “Mallarmargens”.
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