O sábado corria mais reflexivo do que de costume. Véspera de cumpleãnos é uma imersão existencial para mim. Vou tão fundo que preciso de dias para retornar. Alguma indicação de livro? Me envie. Terapia eu já faço! Aliás, logoterapia. Se me sugerir ir à igreja, te silencio. Eu reúno a minha igreja, de preferência acompanhada de petiscos e cerveja – a minha igreja é primitiva.
Ouço um toque vindo do celular. Sei que é relevante, porque não silencio as mensagens de pessoas queridas. Meu celular tem mais gente muda do que o contrário. E o seu? Era um vídeo sobre a alagoana Marta, a nossa camisa 10, a rainha negra canhota do futebol. Aquela que disse que “Uns serão lembrados como os melhores da história, já outros…”. Te admiro pelos gols, Marta, pelas bolas de ouro e tal, mas, por essa frase, te amo. Amo a todos que exercem a sua cidadania no momento em esse país virou um hospício e botou na gente camisa de força. Marta é uma das Martas que ainda sabem discernir o que é verdadeiro, belo e bom do que é falso, feio e ruim. A outra é a Medeiros, que escreveu “Vote pensando naqueles que precisam urgentemente ser mais beneficiados do que você e eu”.
Vi o vídeo uma vez. Mais uma. Minha resposta a esse querido amigo foi: “Obrigado. Sem palavras”. Elas só me vieram hoje.
O imaginário é que depois da amarga derrota, de assumir mais responsabilidade do que lhe cabe, de dar todas as explicações que lhe pediram, de verter lágrimas e palavras de encorajamento para as mais novas, ela adentrou o vestiário. Tomou seu banho em silêncio, deixando a água fresca percorrer seu corpo franzino, mas forte. Estava exausta. Saiu da ducha, trocou-se e pegou o seu banjo. Na véspera, ela tocara músicas de esperança. A boca fala do que o coração está cheio.
Olhou em volta. Havia poucos remanescentes, entre estes, a treinadora e a sua auxiliar. Poderia seguir, mas sentou-se.
O fato é que acomodou o companheiro e começou a tocar um samba de Alcione, a marrom. O canto veio. “Quando eu não puder pisar mais na avenida, quando as minhas pernas não puderem aguentar… Como ninguém cantava, puxou, mais uma vez, a dianteira: “Pode cantar!”… levar meu corpo junto com meu samba, o meu anel de bamba entrego a quem mereça usar. Eu vou ficar no meio do povo espiando, minha escola perdendo ou ganhando, mais um carnaval. Antes de me despedir deixo ao sambista mais novo…”. Subitamente, a voz embargou, os olhos marejaram, mas a mão continuou levando a batida. Do lado de cá do aparelho, eu chorei. Eu não precisava cantar. Chorei por ela, pra ela, pra valer. Todos deveriam ter chorado. Sobretudo, as mistress, uma de costas para ela e a outra com foco nas suas anotações. Ora, ninguém deveria dispersar a atenção quando “Jesus ora”!
Ainda sob o tom da sua batida, a nossa afinada sambista se recuperou e retomou os versos: “Não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar. O morro foi feito de samba, de samba pra gente sambar”. E interrompeu! Parou para dar uma aula de antropologia, um alerta, uma assessoria gratuita, uma curadoria. Sim! Porque o curador é alguém que sabe o que diz porque diz o essencial, o que importa. “Não dá pra cantar, não! Essa sozinha, não! São tantas emoções! Num misto de choro e riso emendou: “Porque isso aqui cês tão filmando… daqui uns anos cê vai mostra, tá! Eu aqui no vestiário, sozinha aqui, pra não deixar o samba morrer. E o samba quer dizer dentro e fora de campo, caramba! Não deixa não!”. O meu coração, que ratifica o erro de Descartes, extravasou: o samba e o futebol, para a Marta, são família. Ela samba o futebol e joga o samba. É o samba no futebol e o futebol no samba, o samba no morro e deste para a avenida, o futebol no morro e deste para o campo. É assim que a gente sabe fazer. E, se a gente não fizer assim, se não jogar sambando, fica despido de alma. Como curadora, Marta toca em assunto que ninguém quer pensar. Ela canta que o futebol não pode morrer, que a alma da gente dentro do campo não pode morrer, que o nosso jeito de jogar futebol não pode morrer, que o esporte que transformamos numa brincadeira de jogar bola não pode morrer. Senão, a gente morre. O futebol que a gente joga precisa ser o futebol que a gente quer jogar.
Fôlego retomado, a jogadora cantou a última estrofe misturando samba e futebol, parte improvisação, como deve ser para ser do nosso jeito, para ficar imortalizado, para ser estudado nas universidades, para ser levado à serio: “Não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar. O morro foi feito de samba, de samba pra gente sambar. De samba pra gente sambar, de samba pra gente jogar, de samba pra gente jogar, de samba pra gente jogar. É isso aí! Paracutá, paracutá ,paracutá!”. E sorriu. Eu também sorri, sua linda! Brasileirinha arretada! Rainha de um povo brasileiro que anda por demais maltratado, por gente desalmada e burra, também na sua arte, na sua cultura, que é a sua alma.