Gritos olímpicos

Ela andava à base de remédio fazia muito tempo. Pais e treinadores sabiam. A junta médica também, é claro. Havia mais duas ou três meninas na mesma situação crítica. O presidente da confederação escondia o caso dos patrocinadores. “Não pode vazar”, dizia, afinal, “os Jogos Olímpicos se aproximam”.

Naquela madrugada ela soltou um grito. E mais outro. Os pais acordaram assustados e moveram-se para o quarto da menina, que já era uma mulher. Encontraram-na escorada na parede, de cócoras. Ela chorava compulsivamente e repetia “todos aguardam, mais uma vez, a minha vitória, mas eu não confio mais em mim”. Os pais quiseram abraça-la, mas ela gritou novamente.

Os pais relataram o ocorrido. A junta médica decidiu afastá-la por um tempo. Os treinadores discordaram. O presidente disse que era melhor permanecer como estava, pois já bastava o vazamento, anos antes, do caso de assédio sobre ela. Aumentaram a dose do antidepressivo, trocaram o ansiolítico, impuseram mais uma sessão de terapia. O tempo passou. Ela pareceu melhorar, pois treinava e competia. Só que não.

A estreia na Olimpíada finalmente chegou. Ela sucumbiu. Na frente de todos. Para além do quarto. Para o mundo. Sequer competiu. Disse, aos vinte e poucos anos, que sentia o peso do mundo nos seus ombros, que queria recuperar o prazer de viver, que precisa se cuidar. Foi uma nova forma de gritar. Um grito olímpico mais importante que qualquer medalha. O mundo chocou-se. Mas ouviu?

Centenas de artigos foram escritos nos próximos dois dias para não serem mais escritos até o próximo caso. Num desses, o especialista escreveu que o esporte é aquela brincadeira infantil predileta que pode se tornar sistematizada, para algumas crianças, em algum momento, atravessando a adolescência e a vida adulta. As ciências do esporte que apoiam o treino e o entorno do atleta não podem perder isso de vista. Se o fizerem, tornarão o processo mutilador. No caso dessa atleta, as pessoas envolvidas, incluindo os pais, são responsáveis pelo cenário que a consumiu, estressou, comprimiu e adoeceu. Quem se responsabilizará por isso? Ora, o esporte não é bom em si. Não é mal em si. É o que se fizer dele. Por isso, pode e deve ser feito de modo diferente, ético, lúdico, humano, o que não fará que deixe de ser competitivo e performático. O esporte não pode é ser desumanizador, como foi nesse caso.

O mundo ouviu?

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