DUAS MEDALHAS, UMA DE BRONZE E UMA DE PRATA.

Chato é essa dor nas costas. Estranhei a cama do hotel. Bebida gratuita no avião, jantar de bacana no quarto e o resultado: uma noite mal dormida. Tudo isso eu estou enfrentando atleticamente. Não poderia ser diferente, né? Medalhista olímpico como velocista, no 4×100 metros. Uma de bronze, uma de prata. Por isso estou aqui. Fui convidado para falar na abertura dos Jogos Universitários de Rio Branco. Fazia bem uns 15 anos que ninguém me procurava. Ex-atleta só coleciona boletos vencidos e dores nas costas. Mas me descobriram, sei lá, pesquisando em algum site sobre esportes. Quando o telefone tocou, fui correr para atender, tropecei no pé da cadeira da mesa de jantar e machuquei o mindinho do pé direito. De modo que, além de tudo, estou mancando. O auditório onde vou dizer algumas palavras de incentivo aos jovens atletas fica no quarto piso do prédio da Faculdade de Educação Física e Desportos. Vai ser uma prova de resistência, pelo pé machucado e pela hiperventilação. Altas doses de sofá e controle remoto. Taí o troféu do sedentário medalhado. Ainda agora achei umas minigarrafas de uísque e vodca numa bandejinha sobre o frigobar. Tenho tempo até virem me buscar. Foi-se a garrafinha de uísque. Vai-se já a garrafinha de vodca. Za Zdorovye! Aprendi com um lutador russo, em Atlanta. Acho que vou dar uma cagada. Tenho tempo. Depois um banho, e aí visto o velho paletó que deixei na varandinha para tirar o cheiro de guardado. Usei no casamento do filho de um amigo, há uns 9 anos, acho. Sabe de uma coisa? Vou entornar essa vodquinha primeiro. Porra, como dói esse dedinho do pé!
Não estou entendendo nada. A moça parecia nervosa. Achei o tom de voz dela um tantinho alterado. Como assim, atrasado? Não era às 11 horas que o carro viria me apanhar? Ah, sim, desculpe, não vi a hora. Quase meio-dia? Posso ao menos tomar um banho e trocar a roupa? Ok, eu desço já. Lá vou eu, sem tomar meu banho, sem ir ao banheiro e sem noção do que vou falar para aquela garotada. A moça estava de cara fechada e se aboletou no banco traseiro, ficou calada a viagem toda até a tal faculdade. Puxei conversa com o motorista. Disse o meu nome e ele disse que, sim, lembrava. Mas quando eu perguntei se ele sabia em que modalidade eu competia, ele enrolou e disse qualquer coisa como corrida de obstáculos. De qualquer modo, conversou comigo até a porta da faculdade, enquanto a moça olhava pela janela e bufava antipática. Quando o carro estacionou na porta da faculdade, vi um grupo de velhotes e umas senhoras, todos elegantemente trajados, alinhados, como um comitê de recepção. Ninguém fez cara feia e nem reclamou do meu atraso. Viu, garota nojenta? O mais velho dos senhores me esticou a mão e se apresentou: Dr. Peres, ex-campeão sul-americano de salto com vara. Também nunca tirei minha vara para correr, brinquei. Ele enrubesceu. Ninguém riu. Mas a simpatia foi mantida. Subimos. Para minha sorte, havia um elevador. Aleluia!
O auditório não era muito grande, devia haver uns 80 alunos ali, no máximo. Nada a ver com a minha imaginação: eu em um palco, a plateia de umas 300 pessoas indo ao delírio. Em vez disso, ouvi uns aplausos desanimados e sem convicção, uns pigarros e a voz de taquara rachada do Dr. Peres anunciar o meu nome. Mais umas pequenas ameaças de aplausos, uma tosse vinda lá do fundo do auditório. Vi, na primeira fila, ainda me olhando com cara de nojo, a tal garota que foi me pegar no hotel. Aí tive a ideia de fazer meu breve discurso para ela. Olhei bem na direção onde ela estava e mandei. Quero garantir a essa moça que foi me buscar no hotel que eu já fui bem mais rápido e preciso, eu disse. Acho que ouvi umas risadinhas abafadas. Dr. Peres bateu uma ou duas palmas. Eu estava suando, e podia sentir meu cheiro azedo de falta de banho, o paletó de anos sem uso se transformou em uma sauna portátil. O suor me escorria pela testa e pelas costas. Resolvi tirar ali mesmo a dúvida que me assaltava desde o convite: porque, me digam vocês, eu estou aqui? Pela primeira vez, ouvi uma manifestação mais explícita. Um rapaz explodiu uma gargalhada na terceira fileira e logo muitos começaram a rir também. Eu já fui um atleta olímpico, duas medalhas, uma de prata e uma de bronze, mas isso foi quando eu ainda conseguia acordar a tempo de não me atrasar para um compromisso, emendei. Lancei novamente o olhar para a moça nervosa da primeira fila. Dessa vez, ela sorriu. Fui desfiando uma piada atras da outra até que me cansei daquilo e disse, encerrando o papo: bem, agora me mostrem onde estão os comes e bebes, que hoje eu acabei ficando sem café da manhã. Foi um sucesso: o auditório veio abaixo, a garotada tinha gostado do meu discurso. Quando desci do palco, mancando que nem um cachorro doente, a moça me esperava com um largo sorriso: vamos para a sala da reitoria, ela disse, lá tem um buffet maravilhoso, assim você pode comer alguma coisa e me contar sobre as suas conquistas olímpicas. Mas ficou para depois. Não tive tempo de ir ao banheiro no hotel, lembram? Urgências são urgências.

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