Bela boa de bola

Foi há muitos anos. Tempo da delicadeza, seguramente não, havia uma ditadura a nos punir. Meados da década de sessenta.
Esqueci o nome da bela boa de bola, mas não esqueço o nome do pai dela: Wilson Filetto. Negro retinto, porteiro da escola em que meu pai era zelador. Nascido em Diamantina e amigo do Juscelino. Ninguém acreditava que era amigo do maior presidente, até que um dia Juscelino, cassado e execrado pela ditadura, foi convidado a ser paraninfo das meninas do curso Normal da sua escola.
Chegando na escola, gritou: Filetto, meu grande amigo, me dê um abraço! Ficamos mais orgulhosos ainda do porteiro do nosso colégio. No final do discurso, Juscelino dobrou os papéis que tinha sido lido antes pelos agentes da repressão e disse para as formandas: espero que vocês tenham orgulho da sua geração, pois tenho vergonha da minha. O porteiro chorou um choro sentido.
Pois é, o porteiro tinha sete filhas, como Garrincha e como Garrincha, botafoguense de sete costados que chorava na bandeira alvinegra.
Uma das filhas, a do meio, numa noite com lua cheia que iluminava nosso campinho em frente à escola, pediu pra bater uma bolinha com a gente. Nós, os meninos, achamos uma afronta. Aonde já se viu? E eu era bom de bola, envergava a camisa dez do escrete da escola da quinta série.
Como só faltava um para completar os times, concordamos. Café com leite, ficaria ali na beirada do campinho, fazendo número. Carta fora do baralho.
Esquisito isso, mulher jogar futebol, era como uma dama fumar um charuto e desfilar na maior avenida. Coisa de homem. Menina nova e pobre, naquela época, era pra cozer e cozinhar. Arroz soltinho aos dez anos.
Pra quê? Na primeira bola, foi driblando todo mundo de área a área, chapelou, deu caneta, gaúcha e só não entrou com bola e tudo porque teve humildade em gol.
E descalça.
O pai, em frente à portaria, teve frouxos de riso. Ele, de antemão, já sabia o que aconteceria. O filho que nunca teve e que gostaria de ter- sei disso, ele confidenciava com meu pai, mas longe das filhas- estava ali, bem na sua frente, bagunçando o coreto e fazendo festa no seu coração.
No outro dia, a bela boa de bola foi a primeira a ser escolhida no par ou ímpar, para o meu desencanto.
Pior, já que eu era o melhor, quis me duelar nas embaixadinhas. Quando ela chegou nos cem, desisti e fui embora emburrado.
Nem sei aonde anda a nossa Marta da década de sessenta, deve ter sessenta anos e lá vai fumaça, nem me lembro do nome dela, mas sei que foi a primeira menina que nos encantou com seus dribles, gols, embaixadinhas e peripécias.
Ah se houvesse futebol feminino nas Olimpíadas naquele tempo…
Infelizmente, as mulheres só foram contempladas em 1996, nas Olimpíadas de Atlanta. A imprensa nem deu muita trela pra elas, estavam mais empolgados é com a nona medalha de ouro, no atletismo, de um veterano de 35 ano, um tal de Carl Lewis.
Nossas meninas brilharam em Atenas, 2004 e Pequim, 2008. Tudo bem que fomos prata nas duas, mas como no Brasil ser vice-campeã é pecado mortal…
Hoje, imagino minha querida bela, boa de bola em frente à televisão de tela plana e plena de convicções que dessa vez as meninas papam o ouro.
Aposto que, nostálgica e pensando no pai, dando chutes no ar, anseia com chuteira de último tipo e campos gramados.
O tempo de jogar descalça, dos dedões destroncados, campos disformes e lua que virava refletor já vai longe…

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