Venho de uma geração hedonista, onde o prazer libertário cultuado por nossos heróis, os escritores, os poetas que fizeram a década de 1920 pelo mundo, nos foi legado como uma missão de vida. Preferíamos o uísque e o cigarro ao ar puro das montanhas, os recitais e os bares aos campos de atletismos.
Mesmo as histórias em quadrinho, por onde muitos iniciaram no universo da leitura, falavam de uma moral austera, mas, contraditoriamente, exaltavam a preguiça e a malandragem. Feliz era Gastão que sem esforço recebia as benesses da sorte. Zé Carioca era o bom malandro que se dava bem, ou contrário do amigo Nestor, um azarado inconteste. Tio Patinhas não precisava trabalhar, apenas economizar, para amealhar rios de dinheiro. Recruta Zero nunca ia à guerra e sempre encontrava um jeito de vadiar e irritar o Sargento Tainha. E Pateta foi representante de Patópolis numa certa Olimpiada, assim mesmo, desprovida de acento e grafada como uma blague.
Nem a retumbante vitória do Brasil na Copa de 1970 nos empolgou tanto, afinal, mesmo tão jovens, já desconfiávamos de tudo que tinha o aval do governo, ainda que fosse a campanha de alfabetização do Mobral.
Enfim, nunca nos empolgou os feitos, modestos, diga-se, de nossos atletas olímpicos de então. Não reverberava em nós aquele espírito guerreiro exaltado desde priscas eras. Queríamos o que havia de humano nos homens e nas mulheres. Gritávamos com Fernando Pessoa: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”.
Mas aí surgiu Gabrielle Andersen. A cena dramática nos chegou pelos telejornais. Uma mulher fragilizada, desidratada, cambaleante e determinada chegava, no limite de todas as suas forças, ao final da maratona na Olimpíada de Los Angeles. Estrávamos em 1984 e outros ventos sobrevoavam nosso continente. Lutas de outrora ganhavam músculos e Gabrielle, anos depois, nos ensinou algo sublime. Disse que ali, com todas as dores que sentia, pensava no fato de dizerem que as mulheres não eram capazes de disputar uma maratona. Corajosamente assumindo as contradições que cercam qualquer humano, confessou que poderia também servir de exemplo para os insanos que ainda hoje falam das “incapacidades femininas”.
Enfim, sobreviveram a emoção e a determinação.
Mais que uma atleta era uma ativista, embora o termo ainda não estivesse em voga.
Vinte anos depois, em Atenas, era Vanderlei Cordeiro de Lima quem nos ensinava o sentido da superação, ou da resiliência, como falam os modernos. Liderando com vantagem a maratona, a apenas cinco quilômetros e meio da medalha de ouro, foi atropelado por um irlandês louco. Ajudado por um cidadão grego, voltou à pista e terminou a prova distribuindo beijos para a plateia. E deitou no peito uma medalha de bronze.
O atleta paranaense tinha se transformado em herói. Já não importava a colocação, mas a determinação de cumprir seus propósitos. E isso é tão humano.
Talvez também posso ser traduzido como espírito olímpico. A verdade, no entanto, não está no ouro, na prata ou no bronze. Essência se molda no ferro.
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Maurício Melo Jr.
Nasceu em Catende, Pernambuco. Diplomado em Comunicação Social e pós-graduado em Ciência Política e Economia, é escritor, jornalista, crítico literário e documentarista. Foi crítico literário e repórter de cultura do Correio Braziliense entre 1989 e 1999. Escreveu resenhas literárias para o Jornal do Brasil (RJ) e Zero Hora (RS). Escreveu e publicou diversos livros infantojuvenis, além de uma novela e um volume de crônicas. Tem contos publicados em diversas antologias. Participou, como palestrante, de diversos eventos literários. Foi júri em diversos concursos literários, como o 19º Concurso de Contos Luiz Vilela (Ituiutaba/MG, 2009). É jornalista da TV Senado, onde, desde 2001, dirige e apresenta o programa Leituras, dedicado à literatura brasileira. Escreve resenhas literárias para o jornal Rascunho (Curitiba/PR) e crônicas semanais para o blog Jornal da Besta Fubana (Recife/PE).
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