O interior da minha geladeira é composto por prateleiras e nichos, verdadeiros continentes sem fronteiras. Você coloca um restinho de arroz num potinho e o potinho some atrás daquele feijão, manteiga, pratos de lasanha ou qualquer outra coisa. O dito avança para o fundo cada vez que mais um singelo potinho entra na geladeira e quando menos se percebe, puft, parece que o potinho de arroz passou para o outro lado do continente, no caso específico do potinho de arroz, o continente europeu.
Minha sobrinha Amanda, que mora em Paris, está caminhando sobre a ponte Neuf, assustada com o movimento dos turistas por causa das Olimpíadas, quando de repente, tropeça no potinho de arroz que coloquei há pouco tempo na geladeira.
Ela para e fica observando o potinho.
Um ponto de interrogação despenca sobre sua cabeça.
Amanda então se lembra da temporada que passou em casa dias atrás, quando peguei um destes potinhos com florzinhas e retirei legumes ao vapor. Ela me falou na ocasião, potinho vintage, amei, eu respondi, quer levar? Vem até com mordida de cachorro e mostrei a tampa toda marcada com os dentes do meu vira-lata que come qualquer coisa que deixamos cair da geladeira. Ela achou graça e mudamos de assunto enquanto eu colocava o potinho novamente na geladeira.
Neste instante na ponte Neuf, Amanda reconhece o potinho e percebe que tem a mesma mordida de cachorro, do meu cachorro.
O ponto de interrogação que despencou na sua cabeça agora abre um buraco na ponte mais antiga de Paris e afunda no Sena.
Não é possível, ela pensa, como assim uma coincidência tão grande?
Ela abre o potinho e sente o cheirinho de arroz feito em casa, o óleo que eu uso, o tempero. Não é possível, ela pensa novamente.
Enquanto isso lá estou na minha geladeira procurando este potinho que nem doida, maquinando que vou achar de qualquer maneira, nem que tenha que retirar toda a tranqueira ali dentro. E retiro toda a tranqueira.
Eis que no teto da geladeira vejo grudado o potinho de arroz.
Reflito :ele não estava lá com a tranqueira. Como é possível?
Desgrudo o potinho que se solta sem a tampa.
Na ponte Neuf minha sobrinha segura a tampa mordida pelo meu cachorro e não sabe onde foi parar o potinho.
O acontecimento é estranho. Mas o mundo em Gaza é mais. Ela guarda a tampa e repete o mantra dos líderes poderosos: cést la vie. Ela vê o buraco na ponte se refazendo sozinho e passa por cima do cimento fresco.
Jogo fora o arroz por duvidar que ainda esteja bom, sem ao menos cheirar, e sinto um peso enorme na consciência imaginando os que dariam tudo por aquele restinho de arroz, mesmo que estragado.