Na Na Na Nan

Se sou capaz de verter lágrimas em inauguração de padaria, imagine em abertura de Jogos Olímpicos. Não falo da Rio 2016, quando me debulhei com o espetáculo que pegou em cheio meu orgulho do artista brasileiro e sua capacidade de fazer bem feito. Pena que aquele deslumbre foi um oásis na nossa civilização desértica de coisas que realmente dão um orgulho coletivo. Paciência. Se não ficou o legado prometido, ficou um frame do que poderíamos ser. Organizados, respeitados, brilhantes e encantadores.
Mas isso é outra crônica, talvez em outro fórum.

Sobre aberturas, poderia falar do ursinho Misha em Moscou ou dos clarins de John Williams em Los Angeles. Mas Londres não me sai das entranhas da emoção. Tenho motivos pessoais.

Eu e minha mulher nos programamos com antecedência para os Jogos londrinos. Ela iria a trabalho e eu fui junto comemorar nossos 20 de casados. Ok. Minha cota de príncipe consorte estava satisfeita. Reencontrei amigos e compartilhamos ótimos momentos vasculhando a cidade e degustando o melhor dos melhores pubs e restaurantes. Estava divertido. Já me imaginei sem ela na da abertura, assistindo ao show na TV do hotel ou ao musical Scherk, num teatro ali pertinho.

Mas eis que o príncipe consorte se tornou um príncipe com muita sorte: na última volta do ponteiro, milagrosamente sobrou ingresso para a abertura.

Pronto. A partir daí tudo foi lucro. Chegamos cedo ao estádio e vimos a História da ilha contada em detalhes. No gramado, um imensa terra plantada, onde camponeses trabalhavam com arados puxados a cavalo, entre carneiros e cabras, vacas leiteiras, gansos e galinhas. De repente, do chão verde rompem chaminés fumacentas e o espaço é invadido por operários e capitalistas de cartola, fazendo sumir misteriosamente os bucólicos animaizinhos e campesinos que habitavam aquela pradaria.

Muito doido o impacto da revolução industrial encenada, que não escondeu nem o corre corre dos proletários, simbolizando as convulsões sociais que se seguiram. O que era verde ficou cinza, e, adiantando o relógio da História, sirenes passam a soar sobre uma Londres soturna, anunciando os aviões da Luftwaffe. Eis que do meio dos escombros, emerge a figura de Churchill sob holofotes direcionados. Tudo se apaga e ouve-se uma orquestra sinfônica regida por Mr. Bean – imaginem a afinação.

Num efeito mágico, o imenso palco do estádio ganha a estética de Carnaby Street onde mini saias passeiam entre tipos que lembram os rapazes de Liverpool. Aff. Haja fôlego para tanta magia. Num imenso telão, Daniel Craig incorporando James Bond adentra ao Palácio de Buckingham e convida a Rainha para um passeio de helicóptero. E os dois decolam do jardim, voam por Londres ao entardecer e logo vêem-se as luzes do helicóptero rondando o estádio. Ele para no ar e Sua Majestade com sua bolsinha e seu agente 007 saltam de paraquedas no meio do campo. Delírio dos súditos, e instantes depois do estádio apagado, puro êxtase: ela surge na Tribuna de Honra, com o saudar característico de sua mãozinha. Ela declara abertos os Jogos da XXX Olimpíada da Era Moderna e as delegações começam a desfilar.

Pausa para água que tiro da mochila, um momento de descanso depois de tanta adrenalina. Dou um espiada para o lado – meu assento era o último da fileira, que dava para um vão, algo como um palco apagado – e percebo um vulto de perna fina, dançando e pulando serelepe ao som que acompanha o desfile.

Cerca de uma hora depois, as delegações já transformando o gramado num jardim de flores alegres, as luzes se apagam. Nós, a plateia participativa, comandamos lanternas multicoloridas. Sim, somos parte da festa. Lá embaixo, uma legião de atletas e ex atletas surge de todos os cantos carregando tochas, sob os cânticos de um coral levitante e se concentra no epicentro do espetáculo, onde a pira é acesa e sobe aos céus, não me pergunte como. Fogos coloridos explodem no entorno, corações e tambores disparam. E do meio do frenesi da multidão enfeitiçada, surge uma voz divina:

“Ladies and gentlemen, Sir Paul McCartney.”

Entranhas tremei. Era ele. O vulto saltitante de então, agora sentado ao piano no palco iluminado do estádio escuro, a dez metros de mim, ataca de All We Need is Love. Depois outra, mais outra, até que encerra com Hey Jude, várias vezes. A cerimônia chega ao fim e o refrão na Na Na Na Na Na Na Nan ecoa entre nós e todos os continentes.

À saída do povo encantado, um silêncio nostálgico invade a rampa. A multidão para civilizada num engarrafamento de gente sem fim. Ninguém andava. Até que minha mulher resolve soltar a voz num Na Na Na tão contagiante, que o povo começa a cantar e andar quase que de mãos dadas, impulsionado por Hey Jude nas veias, até se acomodar no transporte público, confortável, pontual e ordeiro, como a parte final do espetáculo.

E assim minha memória diz como foi a abertura de Jogos que os deuses do olimpo reservaram para mim, como uma medalha de ouro do acaso pendurada no meu peito até hoje. Talvez seja uma história egoica e desinteressante. Mas precisava escrever, para eu mesmo registrar e acreditar que vivi.

Sexta feira é Tóquio. Apesar da perversa pandemia, que seja esplendorosa, expressiva de uma cultura resiliente e admirável. Lencinhos a postos.

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