O dia 5 de agosto de 2024 foi uma data inesquecível, para ser festejado e refletido. Escrevo na manhã desse dia 6, pois ontem eu estava tomado de emoção. Tanta coisa aconteceu, mas me contento em lembrar alguns flashes. Na última competição da Ginastica Olímpica, nos exercícios no solo, as três que ocuparam o pódio – duas norte-americanas e uma brasileira – tinham ancestrais afros, atestando mais uma vez que argumentos baseados no preconceito racial, além de cruéis e estúpidos, são mentirosos. Ninguém deveria submeter suas qualidades ou defeitos baseado em cor ou raça. Porém, o simples fato de, em plena vigília do século XXI, estarmos ainda discutindo coisas desse tipo escancara o tremendo atraso civilizatório que vivemos.
As qualidades técnicas de Rebeca Andrade, Simone Biles e outras figuras geniais do esporte e das artes, são tenazmente dissecadas por quem entende do riscado, muito mais que esse pobre missivista que apenas resvala as superfícies, sem ousar aventurar-me por águas mais profundas. Porém, algo chama a atenção no comportamento destas duas: a atitude de cada uma diante da outra em plena competição, mesmo nos intervalos das rigorosas disputas decididas no limite do erro (ou do acerto) da capacidade humana. Num ambiente de competição tão feroz, encontram um milagroso espaço espaço para a cortesia, em geral inexistente onde existe competição (quem se lembra das preleções de certos técnico de futebol que recomendava porrada nos adversários mais técnicos? Amigos artistas me revelam que em festivais de música – teoricamente um ambiente mais festivo que competitivo -, nos bastidores rolam chutes nas canelas e cotoveladas. No trabalho ou em círculos sociais, nas surdinas travam-se empedernidos combate à cata de qualquer forma de protagonismo). Num mundo, assim doido, atitudes como a cortesia mútua entre Simone e Rebeca ou da brasileira Tamires que carregou a angolana Kassoma nos braços ou quaisquer gestos de cortesia ao adversário, abrem janelas de esperança, uma chance para a Paz, como diria Lennon. Oportunidade para mostrar que o ser humano está acima de tudo. O caso de Simone e Rebeca é exemplar porque ambas sentiram na pele, ou melhor, na carne viva o sofrimento advindo de dolorosas contusões e o peso de carregar nos ombros a responsabilidade corresponder à esperança de milhões de compatriotas. Em Tókio ela deu um basta! A vida não é só competição. Dayane dos Santos sentiu esse peso. Diego Hipólito também! Muitos e muitas sentem esse peso o tempo todo! Não tem cérebro ou corpo que suporta tamanha pressão! Cada um tem um limite que não pode ser ultrapassado.
Uma característica que parece persistir em Rebeca e que pode ser correlacionado com sua amiga e rival, é que não entra em ação pensando em “derrotar” outro ser humano, mas sim em fazer, dar o melhor de si, como se isso fosse a oferta de uma dádiva! Disse Rebeca dias atrás: “Minha vida é a ginástica, eu amo isso!” Seu sorriso espontâneo e honesto, seu olhar benévolo se dirige a todos e todas, seja para suas companheiras de equipe, para os juízes, para o público presente ou para o público que acompanha a distância. Ela parece querer dividir o mérito com o mundo inteiro. Rebeca se comporta como a poeta que se diz apenas ser o canal por onde a Poesia é transmitida. Em suas orações ela não pede vitória, mas que ninguém se machuque antes, durante ou depois das provas: quem já sofreu dolorosas contusões, sabe o que isso significa. Não quero colocar palavras em sua boca, mas ela me transmite a impressão de que nenhuma medalha vale a dor! O que vale é a ventura de poder fazer o melhor. Se for lances geniais, tanto melhor! As medalhas que vão surgindo merecidamente parecem antes de tudo significar: está tudo bem! Vitórias a qualquer preço podem culminar no vazio da solidão, por mais que tenha em torno de si multidões de bajuladores.
CRAVOS + FERRADURAS
Durante esses jogos, vez ou outra nos deparamos com situações vergonhosas, seja em nosso tempo ou na Grécia Antiga, onde tinham situações em que os competidores lutavam até a eliminação física do outro. Brutalidades que sobrevivem em certos rituais simbólicos nos nossos dias, como as famigeradas corridas de touros ou mesmo as “inocentes” brigas de galo. A brasileira Bia Ferreira, literalmente uma vencedora, ao conquistar a medalha de Bronze foi agraciada pelo técnico com a simpática frase: “Nós não cumprimos a meta, foi um fracasso, foi uma bosta…” (Como se chama isso? Falta de empatia? Incapacidade de se colocar no lugar do outro/a?)
Outra situação bizarra, mas aqui não foi erro humano e sim vicissitudes de mamãe Natureza. Gabriel Medina, o surfista, tinha de surfar dentro de um determinado tempo e a onda mostrou a todos que não está nem aí para relógios de precisão: simplesmente não apareceu. Medina perdeu, por isso, a chance do ouro diante da soberba indiferença de Mamãe Natureza. Ela, a Natureza, mostrou que ainda pode dar muitas cartas! Ela quem manda nessa joça e fim de papo! Medina ficou literalmente a ver navios! Surfista sem onda é como jogador de futebol sem a bola ou violeiro sem viola!
O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar”. (Oscar Niemeyer)