Tricô é coisa de homem

Bons tempos estes em que um sujeito famoso, neste caso, o britânico Tom Daley, ouro do salto sincronizado de trampolim de 10m dos Jogos Olímpicos, aparece na arquibancada do Centro Aquático de Tóquio fazendo tricô e que a simpática imagem viralize mundo afora.
A propagação massiva da cena nas redes sociais comprova o que eu sempre disse: tricô é coisa de homem. Você disse, homem? A pergunta veio de Guillermo Sotero, amigo venezuelano que personifica como poucos o verdadeiro espírito machista latino-americano – como se tal postura fosse troféu digno de orgulho.
Entendi o que ele quis dizer, mas demorei para esboçar a resposta e Guillermo emendou: “como assim, homem, ele é gay”! E continua sendo homem, contrapus. O venezuelano se exasperou e, em uma frase, compôs pequena, mas perfeita peça recheada de preconceitos e argumentos com datas vencidas.
“A não ser que o sentido da palavra tenha mudado, estou me referindo ao ser masculino que gosta de mulher, joga bola, fala grosso, se impõe pela presença forte e não se comporta como “mulherzinha” fazendo algo que seria atribuição da esposa dele – caso se interessasse por esposas”.
Guido Bellido Ugarte, o primeiro ministro peruano, autodenominado “homofóbico fanático” (além de misógino) se sentiria representado na figura de Guillermo, pois ele também reverbera esse discurso latino retrógrado. “Ser gay é degeneração”, disse, e citou Fidel Castro, para quem “a revolução não precisaria de cabeleireiros” – o cubano teve de se desculpar anos depois por ter cometido tal frase.
Então, descubro que só consigo ser amigo de Guillermo porque não o levo a sério. Pessoas iguais a ele e Ugarte foram jogados no lixo da história e não perceberam. Não digo que tenho pena deles, porque nenhum ser humano merece pena, e estou convencido que, investidos de poder, são perigosos.
Fora isso, são risíveis – no sentido de desprezíveis; tive a tentação de escrever que nenhum ser humano merece desprezo. De fato, não mesmo. Então, direi que o discurso e a postura deles não merecem respeito algum, são palavras lançadas ao vento.
Olhe lá o Tom Daley fazendo tricô na arquibancada, depois de ter garantido o ouro em Tóquio, enquanto acompanha a seleção britânica. E fez uma bolsinha especial de tricô para guardar a medalha. E está casado (e bem) com o roteirista norte-americano Dustin Lance Black de, entre outros, Milk (Gus van Sant, 2008), pelo qual ganhou o Oscar. E eles têm um filho de três anos e estão realizados nas respectivas profissões.
Tom Daley, classificado como gay neste mundo de compartimentos no qual vivemos, é apenas ser humano. Igual ao Rodrigo Hilbert, bonito, bem-sucedido, feliz, casado com a igualmente linda, Fernanda Lima, e classificado como “homem” e, que, no entanto, adora fazer tricô.
Eu disse bons tempos estes nos quais vivemos porque homens e mulheres se sentem livres para serem o quiserem ser. Perdemos, felizmente, a obrigação de nos comportar segundo padrões, então vigentes, que nos sufocavam. Homem não podia nem ser bonito – Hilbert seria malvisto por não se enquadrar ao modelo – nem poderia usar roupas coloridas ou dançar rebolando ou jogar vôlei ou optar em competir salto sincronizado em vez de futebol.
O venezuelano Guillermo Sotero, o peruano Guido Bellido Ugarte e muitos brasileiros, argentinos, uruguaios, paraguaios, equatorianos, chilenos e colombianos são mulheres e homens tristes porque, muitas (os), sentem-se obrigadas a cumprir determinados papéis que acabam gerando desconfortos e despertando sentimentos ruins.
São tais sentimentos os impulsionadores da violência contra pessoas tão diferentes aos olhos dessas mulheres e homens tristes que alguns chegam a matar, outros se valem de violências diversas. Há quem os julguem escórias sociais, há quem impreque conta eles e há aqueles que se dizem tão santos que não têm paciência com ‘pecadores’ e os enviam diretamente para o fogo inferno – para estes, não existe amor nem graça.
Viram no Instagram que bonitas são as peças de Tom Daley? Ele parece feliz. Sim, parece. E não nos serve de estimulo e de esperança que, em um mundo repleto de incômodos, desalentos, contradições, temores e incontáveis dores alguém se sinta confortável em ser quem é e em fazer o que faz?

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