No meu primeiro contato com a Olimpíada, dia da cerimônia de abertura, pensei em Monet. Imaginei-o olhando paisagens, fazendo recortes e colhendo fragmentos visuais a fim de transformá-los em arte. Nem precisaria, mas adianto-me em dizer que não estou me comparando ao pintor francês. Refiro-me ao método. O impressionismo se caracteriza pelo olhar pessoal daquilo que se observa. Não o oficial, não o formal, não o burocrático.
Foi assim que me sentei diante da TV para ver a competição de esgrima. Thiago, esgrimista filho de um amigo que tentou e não conseguiu índice para Tóquio, irrita-se quando entra na sala e me vê assistindo à eliminação da brasileira Nathalie Moellhausen. “Você nunca se interessou por esse esporte, jamais me viu em ação, nem sabe onde treino e como vivo o difícil dia-a-dia de esportista no Brasil; por que o repentino interesse”?
Eu poderia dizer que escrever é o meu trabalho. Mas ele estava certo. Que entendo eu de esgrima? O que esse esporte me estimula durante os quatro anos que separam um Olimpíada de outra? Nada. Mas a história de Nathalie, sim, me estimulou. Na entrevista pós-eliminação, ela demorou para responder a pergunta do repórter sobre o impacto da derrota.
“Com certeza não gostei. Cortar agora é uma pena, porque as sensações são muito boas. A vida é dia-a-dia. Vou me planejar, mas sempre deixo que a vida me leve onde deva ir. A derrota não tira nada dos meus projetos, pelo contrário. Espero continuar fazendo tudo o que estou fazendo, com força, porque não adianta deixar se derrotar pela derrota”.
Que depoimento excepcional! Quando ela demorou para responder, imaginei que fosse chorar ou se lamentar, se fazer de vítima, como o filho do meu amigo, mas ela se reergueu do fracasso ali mesmo no palco do fracasso. Ganhar e perder fazem parte do jogo – só não pode deixar se abater pela derrota.
Foi precisamente isso que Thiago não entendeu. Se nos últimos quatro ou mais anos eu nada sabia de Nathalie Moellhausen, agora, assistindo meio que aleatoriamente a uma disputa de esgrima, eu a conheci, passo a respeitar o trabalho dela e ainda recebo preciosos ensinamentos da esportista de uma modalidade, para mim, obscura.
Ao validar o próprio esforço e lamentar a não conquista da medalha, ela expressava a importância da esgrima na vida dela. E eu aprendia a valorizar um pouco mais minha escrita – porque gostamos da autocomiseração de dizer que escrever não serve para nada.
Por conta disso, mesmo com sono, decidi prosseguir no ato de observar as imagens da TV nas disputas por medalhas de ginástica artística. E se pode aprender muito nessa observação; basta atentar para as sutilezas.
Vi o ginasta da Malásia sair decepcionado com a própria atuação – a imagem dele, cabisbaixo a um canto do ginásio era o retrato da dor. Vi um espanhol sofrer queda, com raiva, jogou ao chão o saquinho com aquele pó de secar as barras e, depois, era mostrado de costas para o placar – para não se irritar ainda mais com a própria performance.
Assisti também à queda de um garoto russo de 19 anos. A reação dele não foi intempestiva, mas o rosto fechado, o olhar perdido e cabeça baixa diziam o quanto se sentia mal. Envergonhado, segundo o comentário da atleta brasileira Jade Barbosa.
E o que dizer da poderosa equipe chinesa que ficou em primeiro lugar? Era só atleta fazendo careta para as câmeras, piscando os olhos, erguendo dedos em sinal positivo e desfilando feito primas-donnas. E tinham o direito de fazer festa e poderiam ser até um tanto menos comedidos.
E há os rituais. Os meninos da ginástica insistiam em passar o pó nas barras e argolas a fim de lhes dar segurança, e proteger a saúde usando algo como álcool, e a colocar e tirar uniformes para manter o aquecimento e a agradecer, mãos postas, após as apresentações. Ouvia-se esparsos aplausos no imenso ginásio vazio. E no meio do vazio lhes cabia agradecer, pois, de alguma maneira, tinham atingido um objetivo.
A impressão final veio de um romeno de 40 anos, veterano, espécie de guru de outros atletas. Lá estava ele buscando um pouco mais da glória dos pódios, das medalhas e das coroas de flores e, depois de duas tentativas, saiu chateado. Se Nathalie não quer desistir, ele, talvez pense em parar depois de Tóquio. O russo também vai seguir – só tem 19 anos; um rapaz israelense com mais de 30, quem sabe?
Agradecer, tempo de começar, tempo de parar, decepcionar-se, irritar-se, ficar envergonhado, alegrar-se, encarar derrotas, festejar vitórias. Eis os diversos palcos de uma Olimpíada servindo de espelhos a mostrar pequenos retratos nossos. Alguns edificantes; outros, nem tanto. O retrato deixado por Nathalie Moellhausen, por exemplo, me foi muito precioso. Valeu uma medalha, valeu uma olimpíada.
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João Nunes
João Nunes é formado em teologia e jornalismo. É integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema e autor do livro Paulínia – Uma História de Cinema (Paco Editorial, 2019). Atualmente assina a coluna Sala de Cinema no site horacampinas.com.br.
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