Futebol é coisa de mulher

Convidei os amigos Sálvio e o filho dele, Maurício, para assistirem, no meu apartamento, ao jogo da seleção feminina de futebol contra a Zâmbia, acompanhados da requintada cesta de café da manhã do Café Regina. O Sálvio e eu somos aposentados e o Maurício ganhou merecida (e ainda foi pouco) semana de folga, após passar a pandemia inteira trabalhando presencialmente.
Sálvio e eu somos velhos companheiros nos jogos da Ponte Preta, no Majestoso, e há mais de 30 anos ele faz meu imposto de renda. Em 1982, nasceu o Maurício e ele esperou o moleque fazer cinco anos para levá-lo assistir a um dérbi contra o Guarani. O garoto estreou na vida de pontepretano vestindo camisa do André Cruz – presente meu.
Homem feito, comíamos pizza com vinho no Rosário, de 70 anos, o mais antigo da cidade, quando lhe revelei um segredo: eu me dizia pontepretano, ia aos jogos, vestia uniforme (ficava no alambrado porque ali eu podia tirar a camisa), tinha adesivo do time no carro, brigava com quem falasse mal da Ponte e (isto nunca vou me perdoar) tinha coragem de gritar gol contra meu time, o Guarani.
Nossos times, hoje, são arremedos daqueles tempos (ambos na Série B), a seleção masculina provoca tédio – o time só pensa em euro – e ainda tenho de ouvir a imprensa elogiar Neymar, como se ele tivesse à altura de limpar a chuteira de Pelé, Careca, Tostão, Rivelino, Falcão e outros.
Nos últimos anos, muito mais arejado que o Sálvio e eu, Maurício tentou nos convencer de que o futebol masculino estava em inexorável decadência. Agora, dizia ele, futebol é coisa de mulher. Comecei a ver os jogos femininos, mas torcia o nariz. “Você é um machista inveterado”, ele repetia. E foi ideia dele assistirmos juntos ao jogo das Olimpíadas; eu mesmo não entendi na hora porque ofereci meu apartamento.
Quando abri a porta para recebê-los, minha máscara caiu e o mundo do Sálvio desmoronou. Sálvio não acreditou no que viu. Minha estante de livros era verde, a toalha da mesa era verde, o sofá e até a camisa – tive a desfaçatez de dizer que era cor da seleção – ele me jogou na cara que a camisa da seleção é amarela. Pior: na parede da sala repousava retrato enorme do Guarani campeão brasileiro de 1978. Tenso, mas se segurando, Sálvio me interpelou:
– Que brincadeira de mau-gosto é essa, Bruno.
Eu me chamo Bruno, nome dado por meu pai, também pontepretano, em homenagem ao zagueiro da Ponte que mais atuou na história do time. E, igualmente, para homenagear, Sávio me chama de Bruninho – como o jogador era conhecido. Tomado de raiva, ainda contida, pela primeira vez na vida ele me chamou de Bruno.
– É por isso que você nunca me convidou para conhecer sua casa?
Agora, os olhos dele me fixavam com uma dureza de doer a alma. Vi que a mão direita estava fechada, como quem prepara um soco, observei os lábios ressacados e trêmulos e o rosto vermelho, como se consumido por febre.
– Sim, era por isso, balbuciei.
Ele baixou a cabeça, lhes convidei a sentar, o jogo começara havia dois minutos e o café estava servido. Em silêncio comemos e, sem nenhum grito, espasmo, comentário e interjeição, assistimos ao jogo. Com os olhos pregados na TV, eu pensava nas conversas com o Maurício.
Exagero, dizia ele, quando afirmo que o futebol masculino está em decadência; só quero suscitar debate. “As mulheres não querem o lugar dos homens; antes, almejam o lugar delas”. Veja, três marmanjos despertados cedo para assistir ao jogo feminino. No campo, mulheres; apitando, uma mulher; narrando a partida, Renata Silveira; comentarista, mulher*. Narração e comentários irretocáveis.
Havia um homem, o simpático Sergio Xavier, que por duas vezes se enrolou. “Quando se está com um jogador a menos”. Jogadora, se corrigiu. Depois: “quando se está com um a menos”. Uma, se corrigiu. Meu inconsciente gostou e comentei com o Maurício, primeiro diálogo desde que começou o jogo, uma vez que o Sálvio nem olhava na minha cara. “É isso, não funciona, a gente sempre pensa na seleção masculina”.
A gente, interveio Maurício, ou vocês machistas que – estes, sim – vão perder o posto. Podem se debater, se revirar, gritar, explodir, a história está acontecendo. As mulheres estão chegando para ocupar o espaço que lhes foi roubado a vida toda. Ou vocês aceitam ou aceitam.
Ele tinha razão; porém, meus sentimentos machistas e o olhar preconceituoso continuavam a me trair. Xingava a seleção masculina, mas desdenhava a feminina.
Quando o jogo terminou e o Brasil se classificou para enfrentar o Canadá, rumo ao sonhado ouro, senti que algo morria em mim porque há coisas que precisam, mesmo, morrer dentro e nós e, então, renascer. E renascer significa renovação. Outra mente, outro olhar.
No Sálvio, que saiu sem se despedir de mim, algo também morreu. Juro que sempre quis lhe contar, mas não tive coragem. Trazê-lo para minha casa, foi descuido, mas, também, a salvação. Sabe quando você quer que a pessoa saiba e, de repente, o inconsciente se encarrega de se descuidar?
Velhos amigos enfrentamos ao mesmo tempo idêntico sentimento de perda. No caso dele, a verdade será sempre o melhor caminho. No meu, depois de uma vida inteira, acho que comecei a entender um pouco o sentido de igualdade entre homem e mulher, de “olharmos juntos na mesma direção”.
O Maurício podia ter nascido antes para nos ensinar antes. Não. Nasceu no tempo certo para ensinar no tempo certo. O Sálvio e eu não tínhamos entendido que o tempo passou e muita coisa ficou velha e o novo veio.
Despedimo-nos marcando novo café da manhã para ver as meninas contra o Canadá. Então, o Sálvio se manifestou emburrado: “Eu não venho”. E o Maurício me falou baixinho: “Vem, sim, ele vai ficar bem, logo passa.

* Mil perdões à comentarista do SporTV, mas não consegui confirmar seu nome; quem souber, por favor, coloque-o, aqui

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