Duelos de Espadas

Já se sente no ar o clima das olimpíadas. Chamadas nas TVs são mais constantes, os atletas que passaram pelas etapas classificatórias se concentram para o grande momento de abertura e para todos os desafios que lhes aguardam. Há notícias de que até no Olimpo os deuses se mostram ansiosos para o início das competições da nova edição deste ano em Paris. Dizem que Afrodite já encomendou um penteado novo, que será adornado com um delicado pente de ouro incrustado com rubis e turquesas. Hefesto descansa de todo trabalho de metalurgia realizado: as espadas dos esgrimistas, os discos dos lançadores, as pontas de flechas dos arqueiros e caprichou nas partes de metais das bicicletas dos ciclistas e dos barcos das canoagens, repousa agora sua perna manca numa poltrona reluzente ao lado de Hera. Ares, orgulhoso e rabugento, se recusou a dar uma pausa nas guerras em andamento pelo mundo, coisa que fazia comumente nos jogos olímpicos da Antiguidade. Orfeu anda de uma lado para outro com uma felicidade estampada no rosto, mostrando sua vaidade por ter contribuído com a inspiração de uns tantos bardos que compuseram magníficas canções para o deleite do distinto público mundial. Palas Atena se entretém com sua coruja ao lado de Ártemis e trocam impressões sobre os possíveis novos herois que brilharão nos jogos. Apolo promete a todos um bom tempo e um sol esplendoroso durante todo período das competições. Zeus, sentado no seu majestoso trono, procura mostrar serenidade, mas parece inquieto querendo saber a todo momento de Hermes das últimas novidades:
– Relembre algum episódio da pré seleção dos atletas, nobre mensageiro, de algum caso digno que mereça ser guardado na memória para toda a posteridade.
Então Hermes começa a narrar um episódio de grande injustiça.
– Não encontrareis, nobre Zeus, na lista dos convocados para as olimpíadas deste ano o nome do espadista Alexandre Camargo, o primeiro do ranking brasileiro nesta categoria. A Confederação Brasileira de Esgrima havia recorrido à Confederação Pan-Americana e à Federação Internacional de Esgrima para reverter o controverso resultado da partida final de espada dos jogos pré-olímpicos da Costa Rica, cuja vitória garantiria a passagem do atleta para a França.
Assim começou Hermes a narrativa do infeliz acontecimento, que muito comoveu o pai dos homens, e assim continuou:
Apesar de não ser muito prestigiado entre os fãs de esportes olímpicos no Brasil, é notável perceber que a esgrima esteve presente em todas as olimpíadas modernas, desde que surgiu em 1896. Esse esporte faz muito sucesso na Europa, na América do Norte e angariou nas últimas décadas muitos adeptos e admiradores em vários países da Ásia. A história da esgrima não registra grandes escândalos em competições, se comparada a outros esportes, à exceção de caso ocorrido nas olimpíadas de Londres, de que falarei mais abaixo, por isso a partida de Alexandre Camargo causa estranheza e perplexidade. O acontecimento não teve uma divulgação pela mídia tão grande e vale a pena o relato.
Em abril deste ano de 2024 houve o campeonato de espada dos jogos pré-olímpicos da Costa Rica, que garantiu uma vaga para os Jogos Olímpicos de Paris 2024. Ocorreu então no derradeiro combate, o polêmico episódio envolvendo os esgrimistas Alexandre Camargo e o Canadense Nicolas Zhang. Camargo vencia o que seria o último assalto da partida por 14 a 13. A vitória estava praticamente garantida para o espadista brasileiro; no entanto, quando faltavam apenas três segundos para o término da contenda, o canadense simulou claramente uma queda. Diz a regra que em caso de queda de um dos jogadores não pode haver ataques de nenhuma das partes e o jogador que a fizer deverá ser punido. Camargo, que liderava o combate, ao ver o desequilíbrio do adversário, conteve seu ataque, o que era de se esperar; seu oponente, no entanto, não teve o mesmo comportamento e, aproveitando-se da ocasião, matreiramente, arriscou o ataque e fez o toque. Por esse fato, o atleta canadence deveria ser punido duplamente, pela simulação da queda e pelo ataque desfechado e a vitória seria do brasileiro, mas o juiz errou e considerou o toque do canadense como válido, empatando o jogo. Houve protestos, mas estes não conseguiram evitar que um último assalto de desempate fosse realizado; em casos assim, o primeiro competidor a fazer o toque no outro é considerado o vencedor. Nicolas Zhang levou a melhor e conquistou sua vaga para as olimpíadas de Paris.
Apesar do recurso impetrado pela Confederação Brasileira de Esgrima, o resultado não foi revertido.
Zeus empalideceu e ponderou:
– Ainda que seja de minha vontade, nada podemos fazer, nobre deus e portador das boas e más notícias. Isso cabe menos à justiça divina que a dos homens.
– Assim como nada pudemos fazer naquele outro episódio muito mais grave, e que tanta indignação causou em Palas Atena, que quase a levou entrar em combate com Ares. Lembra do caso, Zeus, ocorrido há exatos doze anos nas olimpíadas de Londres?
– Bem me lembro, Hermes, mas relata-o novamente aqui para que fique na memória dos homens.
– Foi na semifinal feminina de espada, estavam na pista a alemã Britta Heidemann e a sul-coreana Shin A-Lam. A disputa se mostrou desde o início acirradíssima e assim foi até o último assalto. A partida chegava ao seu final empatada, com vantagem para a atleta sul-coreana. Se assim terminasse a contenda a vitória caberia a Shin A-Lam. Britta Heidemann tinha obrigação da iniciativa de ataque, tentou, tentou, mas Shin A-Lam soube responder a cada ataque com um contra-ataque preciso e segurou sua vitória até o minuto final; melhor dizendo, até os milésimos de segundos do minuto final, quando o combate foi interrompido com um ataque da alemã e um contra-ataque efetivo da sul-coreana. Foi então que aconteceu o imponderável, retomado o combate, o tempo se esgotou e todos imaginaram que a partida havia terminado com a vitória de Shin. Aconteceu então o equívoco, a juíza de pista não havia dado início ao combate e pediu para que o cronometrista ajustasse novamente o tempo. O cronômetro, no entanto, não se ajustava com um intervalo menor que um minuto. Houve protesto do treinador sul-coreano, mas este não foi considerado. Graças ao erro de procedimento, a atleta alemã foi favorecida e soube se aproveitar do tempo ampliado, fazendo o toque decisivo que pôs fim à partida. A atleta alemã conquistou a vitória, para espanto da plateia. Shin A-Lam não se conformou com aquele erro que lhe tirava a vitória, numa partida em que ela havia sabido administrar até o final e se recusou a sair da pista. Se saísse, a atleta admitia o resultado do embate; assim diz a regra da esgrima. Então Shin se sentou na pista de esgrima e ali permaneceu enquanto seu técnico discutia a situação com os árbitros, Shin A-Lam e ficou ali chorando, chorando copiosamente pela derrota injusta que lhe impuseram. A comoção foi geral, o público tomou suas dores, para quase todos que estavam ali na plateia ela fora a campeã daquela noite. Shin permaneceu sentada na pista de esgrima por exatos setenta minutos em prantos, até que membros da federação vieram retirá-la do local.
Quinze minutos depois, Shin A-Lam teria outra partida do torneio por equipe, da qual, sem condições físicas e emocionais, saiu derrotada. Posteriormente, devido aos protestos e a grande comoção causada pelo episódio, os organizadores dos jogos acabaram por reconhecer o erro cometido e decidiram atribuir à esgrimista sul-coreana uma medalha de consolação. Mas que consolação poderia haver para uma atleta a quem retiraram a possibilidade de disputar uma medalha de ouro nas olimpíadas?
Zeus ouviu consternado essa narrativa e observou ao final:
– Há em determinadas derrotas, uma dignidade que nem as vitórias são capazes de alcançar, pois trazem em si a chama do que há de mais nobre do que chamamos de espírito olímpico.
Algo semelhante ao que sentiu Shin A-Lam há doze anos deve sentir nesse momento o nosso Alexandre Camargo a quem esse humilde escriba presta aqui profunda reverência e solidariedade. O que nos resta a todos agora é aguardar pelos jogos, vibrar e torcer para que os melhores, de fato, vençam.

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