A longa marcha de Caio Bonfim: Essas pratas valem ouro – parte 1

Por que o homem magro cruzou a rua? Ele sua em profusão, mantém um ritmo ligeiro e controlado em seus passos, e um olhar ansioso. Não é a primeira vez que faz isso. Ele treina para esta empreitada por uma parte considerável da vida. Sabe que cada segundo conta para uma nova marca. Suponho que em sua mente a emoção e o foco travem uma queda de braço, com o segundo em vantagem. Ele atravessa e carrega a nação consigo. Assim Caio Bonfim atingiu uma medalha inédita para o Brasil na modalidade de marcha atlética na quinta-feira, dia 01/08/24, nos Jogos Olímpicos de Paris. Assim como Rebeca Andrade no mesmo dia, foi um segundo lugar com sabor de vitória.

Sequer sabia que marcha atlética era uma competição dentro das Olimpíadas, embora seja disputada desde os anos 90. Mais do que isso, não conhecia o esporte, exceto por uma menção em um episódio da série de comédia “Malcolm in the middle”. Para os leigos, pode parecer estranho quando visto à distância, quase um rebolado mecânico. É uma progressão de passos que segue uma técnica rígida: o movimento ocorre pois o atleta precisa manter contato com o solo com, pelo menos, um dos pés e a perna numa posição vertical. O outro pé é levantado somente quando o calcanhar do segundo tocar o chão. Além do controle do corpo, exige concentração, pois cada falha no deslocamento é punida. Imagine ter que realizar tudo isso de maneira acertada por 1h19:09? Eu tropeço nas minhas próprias pernas ao me levantar de uma cadeira.

Não citei à toa no parágrafo anterior a palavra “rebolado”. Após a prova, Caio Bonfim deu um depoimento em tom de desabafo e desforra, em que reivindicou sua conquista diante daqueles que debocharam dele e de sua modalidade, especialmente quando treinava nas ruas de sua cidade. Ele gritou o óbvio: é um esporte, não é uma brincadeira. Há muito que pode, e deve ser, analisado a partir dessa fala. Desde a necessidade de resiliência diante de falta de incentivo ao preconceito de outras pessoas. Sem recursos ou um local de treinamento adequado, é preciso “rebolar” bastante para alcançar as condições para uma disputa mundial, com concorrentes que não sofreram desses reveses. O outro aspecto, que não deveria ser relacionado à prática, surge da cultura homofóbica que permeia o pensamento brasileiro.

Pergunto-me se Caio Bonfim teria conseguido a colocação se, além de sua força de vontade, não tivesse contado com o estímulo de seus pais. Atletas, sendo a mãe uma marchadora, eles souberam canalizar a energia do filho e guiá-lo para o encontro de uma atividade. Também são seus treinadores, o que demonstra o quão envolvidos estão os membros nesse projeto. Apesar de existir sucesso na ausência familiar, faz a diferença ter as pessoas que ama ao seu lado. Tanto nos sucessos quanto nos fracassos. Porque quando o emocional nos abala, somente aquele em que confiamos pode nos colocar na realidade: “É preciso abrir mão de algo para conseguir o que se deseja”, “Empenhe-se, não desista”, “Lembre-se de onde veio.”, “Não deixe que o reconhecimento suba à cabeça.”. São frases de manual de autoajuda enquanto isoladas, mas, aplicadas pelas pessoas certas, no contexto preciso, são transformadoras. Acho que nossos voos maiores são alcançados através de uma vigília cuidadosa de quem nos nutre.

Talvez seja este sentimento de apoio irrestrito outro impulsionador nos momentos em que a descrença ou má-fé alheias se manifestam. Independentemente da sexualidade do atleta, o que isso deveria importar para os outros? Mesmo com o progresso atingido em políticas para pessoas LGBTQIA+ na sociedade, a aceitação em todas as camadas ainda está em sua infância no Brasil. Para quem cresceu nos anos 90, como eu, é um mundo muito diferente, ainda bem. Mas os xingamentos e as perseguições seguem fora de locais seguros. Pink money é bem-vindo, mas demonstrações públicas, sejam verdadeiras ou, como no caso do atleta, um engano, são alvo de escárnio e até mortes. O Brasil precisa superar longas marchas em busca de um futuro digno.

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