Vou te contar, foi uma avacalhação. Uma Olimpíada durar cinco meses? Essa durou. Sem um relatório oficial do ocorrido nos Jogos? Não pode, mas aconteceu. E começar sem cerimônia de abertura, sem um desfile, qualquer coisa solene marcante? Não deveria ser assim, mas te garanto que foi.
Então, você dirá, essa coisa atrapalhada só pode ter sido num país bem fuleiro, subdesenvolvido, certamente no Terceiro Mundo, em alguma cidade pobre, feia e sem glamour. E eu retrucarei: quer apostar que não? Não tente adivinhar. Pois vai perder seu tempo.
E eu continuo a provocar sua imaginação. Imagine uma edição dos Jogos Olímpicos em que não haja estádio ou ginásio próprio. Em que a abertura se resuma a umas palavrinhas ditas pelo presidente do país antes de uma prova de ginástica.
Imagine as provas de natação disputadas no rio que corta a cidade, correnteza abaixo, propiciando uma série de recordes totalmente incompatíveis com os resultados em uma piscina comum. E sem que o tráfego de embarcações tenha sido suspenso enquanto os nadadores disputavam! Claro que esses números não seriam validados…
Agora pense em competições de futebol, tênis, remo, polo e cabo de guerra com times formados por atletas de diversos países. Sem nenhuma bandeira nacional. Imagine que as mulheres mal passaram de 2% do número de homens. E tente acreditar que um jogo de croquê teve apenas um ingresso vendido, a um torcedor que passava por ali.
Ah, e confusão de nacionalidades. Um atleta de um país competir por outro? A comissão de premiação não saber a que nação creditar a vitória de vários competidores? Três provas de tiro disputadas ao mesmo tempo em lugares distantes?
E quadras insalubres a receber jogos de esportes coletivos? Outra de local inadequado: na prova de arremesso de disco, com a força empreendida pelos atletas, pelo menos três peças atingiram perigosamente a plateia.
Não, você nunca vai acreditar que houve uma Olimpíada em que o finalista no atletismo se recusou a participar da final porque sua religião não permitia que ele fizesse isso em pleno domingo. Você duvida? Mas é verdade.
Olha, você pode me chamar de mentirosa, mas te garanto que foi verdade. Briga na final de rúgbi, soco na de corrida, tudo isso foi fichinha. Muitos vencedores desses Jogos Olímpicos só seriam reconhecidos e receberiam medalhas 12 anos depois. Como então foram premiados? Com lembrancinhas como guarda-chuvas, pratos e carteiras!
E a cidade-sede ainda tentou incorporar aos Jogos as provas de bilhar, corrida sobre asno, pesca com vara, torneio de pipa e tiro com canhão. Só conseguiu emplacar natação com obstáculos e resistência subaquática…
Para finalizar, contarei a história de um vitorioso anônimo. Até hoje ninguém conseguiu descobrir o nome do menino chamado para substituir o timoneiro numa prova de remo em que o titular não teve condições de atuar. O garotinho entrou na embarcação, conduziu o conjunto à vitória, participou da cerimônia de premiação… e desapareceu para sempre. Nunca se soube seu nome ou sua idade.
Leitor amigo, toda essa esculhambação não aconteceu no Brasil nem em nenhum país da periferia. Quem protagonizou essa Olimpíada esdrúxula no ano de 1900 foi Paris, a Cidade Luz, a capital da França, o charmoso sonho de consumo das pessoas mais nobres – e das mais esnobes – do mundo. Que hoje recebe, com a pompa devida, sua terceira edição dos Jogos Olímpicos.
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Clara Arreguy
Clara Arreguy é jornalista e escritora. Mineira de Belo Horizonte, mora em Brasília desde 2004. Trabalhou nos jornais Estado de Minas e Correio Braziliense, na revista Veja Brasília, em assessorias de imprensa de empresas e governos. Tem 32 livros publicados. Vários deles falam sobre esportes: o romance "Segunda divisão" (Outubro Edições, 2023), o volume de contos "Sonhos olímpicos" (Editora Franco, 2014), o volume de crônicas "Futebola" (com Fernanda de Aragão, Outubro Edições, 2020) e o e-book "Chico Paquequer, a football tale" (www.outubroedicoes.com.br). (Foto: Eugênia Alvarez).
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