A chama olímpica representa a iluminação divina pelo fogo, roubado por Prometeu dos deuses gregos para entregá-lo à humanidade. O poeta contemporâneo carioca Alexei Bueno tem uma obra intitulada Poemas gregos, na qual os mitos clássicos são “reatualizados” abundantemente, como no poema “Desde que o Fogo, Prometeu, nos Deste,” que “reatualiza” o mito de Prometeu e a imagem do fogo funciona como o instrumento que proporciona a visão analógica do mundo como fogos de fusão. “O fogo é íntimo e universal” (BACHELARD, 2012, p. 11), porque no imaginário ele pode se contradizer, porém fundir os contrários; e o respeito ao fogo é ensinado, não natural: o fogo é muito mais um ser social que um ser natural, havendo uma interdição social em relação a ele. Prometeu é quem rompe a interdição e quer compartilhar o rompimento com os homens, sofrendo a inelutável hybris por seu ato de excesso.
Eis, então, a verdadeira base do respeito diante da chama: se a criança aproxima sua mão do fogo, seu pai lhe dá um tapa nos dedos. O fogo castiga sem necessidade de queimar. Seja esse fogo chama ou calor, lâmpada ou fogão, a vigilância dos pais é a mesma. Inicialmente, portanto, o fogo é objeto de uma interdição geral; donde a seguinte conclusão: a interdição social é nosso primeiro conhecimento geral sobre o fogo. O que se conhece primeiramente do fogo é que não se deve tocá-lo. À medida que a criança cresce, as interdições se espiritualizam: o tapa é substituído pela voz colérica; a voz colérica pelo relato sobre os perigos do incêndio, pelas lendas sobre o fogo do céu. Assim, o fenômeno natural é rapidamente associado a conhecimentos sociais, complexos e confusos, que não dão muita oportunidade ao conhecimento ingênuo.
Por conseguinte, visto que as inibições são, à primeira vista, interdições sociais, o problema do conhecimento pessoal do fogo é o problema da desobediência engenhosa. (BACHELARD, 2012, p. 16-17)
A citação se encontra na obra A psicanálise do fogo, de Bachelard, na qual o autor articula alguns complexos advindos do imaginário do fogo. O texto dos Poemas gregos pode ser lido pelo viés do complexo de Prometeu, que é o agrupamento de “todas as tendências que nos impelem a saber tanto quanto nossos pais, mais que nossos pais, tanto quanto nossos mestres, mais que nossos mestres” (BACHELARD, 2012, p. 18). A criança estapeada pelo pai sempre tenta roubar fósforos longe de sua vista. Toda criança é um pequeno Prometeu. E tal tentativa já evidencia uma vontade, a vontade de intelectualidade, de racionalização, de conhecimento. Transcrevo abaixo o poema:
Desde que o fogo, Prometeu, nos deste,
No Cáucaso do nosso próprio espírito
Como tu, mesmo em marcha, estamos presos
E o tempo é o nosso abutre.
Nunca mais, por tua causa, pararemos,
Em nosso próprio andar agrilhoados
Como cegos que gemem por não verem
O que veem no entanto.
Mas um dia, algo oculto e claro o pede,
Seremos finalmente, e como os nossos
Teus grilhões do não-ser romper-se-ão,
E a ave enforcarás.
Foi por isso que o injusto deus um dia,
Tremendo algo maior, aprisionou-te,
Mas já no Olimpo todos ouvem trêmulos
Os nossos próprios passos.
(BUENO, 2003, p. 186)
A vontade de intelectualidade (racionalização, conhecimento) não se concretiza de modo somente eufórico no poema, mas de modo ambíguo, deixando revelar o poder de contradição que o fogo pode introduzir em seu imaginário. O conhecimento promovido por Prometeu também é um castigo ao homem, um castigo que o homem contemporâneo ainda sofre, e talvez sofra de modo mais intenso que em tempos mais antigos: o grilhão do progresso. Do progresso e suas consequências nefastas. Prometeu se tornou o herói civilizador, promotor do trabalho e do progresso. E com progresso, podemos pensar na ciência com as vacinas. Paradoxalmente, tal conhecimento trouxe cegueira, o fogo cegou, obscureceu, ao invés de iluminar todos os recônditos do espírito humano. Mas, talvez paradoxalmente também, não trata aqui de uma iluminação do espírito humano ilustrado, mas de uma iluminação mais profunda, oposta à ilustração voltairiana que quer retirar o mistério do mundo, isto é, oposta à ilustração da ideologia do progresso. Prometeu se tornou um burguês ilustrado, um amigo de Voltaire. A iluminação que o eu poético de Alexei Bueno quer que o fogo possibilite é a da emancipação transcendente coletiva. Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para dar aos homens, no fundo, deu não para retirar o mistério do mundo (para se agrilhoar na ideologia do progresso) mas para que idealizássemos o fogo como possibilidade de transcendência coletiva. A vontade de intelectualidade, de conhecimento deveria ser também vontade de transcendência, e não a anulação dela no espírito humano, corrompendo sua condição essencial. O tempo é marcha (é genético, linear, cumulativo), é progresso, é nosso abutre, nosso castigo, o castigo para o espírito humano, limitado a uma ideologia que não permite a verdadeira emancipação coletiva do ser humano, que tem de se pautar também na busca pela transcendência. O fogo é, assim, maldição, castigo (progresso) e possibilidade de bênção, presente (idealização, emancipação transcendente). O conhecimento humano se tornou ideologia do progresso, porém a partir desse fatalismo a chama e o fogo, símbolos da transcendência (o fogo idealizado), poderão um dia se acender. A contradição do fogo no poema é bem contrastante, porém próxima de uma mesma lógica dicotômica: é danação (progresso) e possível purificação (transcendência). Gememos por não vermos o que vemos no entanto. Um dia seremos (seremos o ser que realmente somos e que vemos e não vemos que somos) através de algo que é oculto e claro, uma contradição fundamental, sem nome (fogo é o nome?), universal, aproximação e conciliação dos contrários. A contradição do fogo (continuemos denominando fogo como imagem que nos encanta) seria, enfim, sua própria fusão essencial, a universalidade do espírito humano. Mais um paradoxo: os deuses aqui são obstáculos para a emancipação transcendente coletiva. O eu poético, criador, parece ser novamente mago: “Para o mago, os deuses não são hipóteses nem, como para o crente, realidades que é preciso aplacar ou amar, mas poderes que é preciso seduzir, vencer ou burlar” (PAZ, 2012, p. 61). Porém esse mago sabe que não estará solitário, e pede ajuda aos outros homens. Uma ajuda que já veio e que sofreu a hybris, ajuda para uma consequência que se “reatualiza” no mundo contemporâneo como uma vicissitude que viajou o tempo histórico e repousa no espírito humano. Para o eu poético, os deuses não temiam que Prometeu (o homem) retirassem o mistério do mundo. A bem da verdade, temiam que o homem conseguisse transcender, atingir uma idealidade excessiva, não precisando mais do contato subalterno com os deuses, vivenciando o próprio mistério enquanto mistério, não enquanto mero enigma a ser decifrado. Assim posto, castigaram Prometeu e o homem com a cegueira ilustrada, anuladora da iluminação autêntica, completa, total. A transcendência deverá se realizar, pois, no tempo mítico que deverá ser encontrado no próprio tempo do mundo contemporâneo. Que nossos esportivos herdeiros de Prometeu assim o façam, nos transportem para esse tempo mítico no seio da contemporaneidade, abençoados e amaldiçoados, desafiando os deuses em nome de uma transcendência sem eles, em busca de alguma mais autêntica experiência do sagrado, que passe pelo crivo da coletividade humana, mas que englobe as diferenças com suas ineludíveis diferenças.