O CORPO PARALÍMPICO E A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA

Na crônica “Os Jogos, os Corpos”, supus que as Paralimpíadas pudessem ser o espaço de corpos que talvez criassem linhas de fuga no tocante ao bipoder olimpiano. Mas essas linhas de fuga são produtos de uma tensão. O bipoder, com seu crescente apelo ao estilo de vida “ativo” e saudável, também atinge a órbita da vida das pessoas doentes ou deficientes, disseminando estratégias que visam à configuração do discurso de inclusão social, da conquista da cidadania, do respeito à diversidade e do reconhecimento político da diferença, tópicos, em primeira instância, espetacularizados pelas Paralimpíadas como o momento paradigmático da divulgação de potencialidades e possibilidades de um Übermensch – em uma colaboração entre Nietzsche e a DC Comics – que o é por tomar para si (governar para si) a responsabilidade pela manutenção da saúde que supera os limites, as barreiras por meio de um corpo válido, eficiente, produtivo e, no caso dos jogos, também performático. Mas a eficiência e a produtividade desses corpos podem acionar os dispositivos de potencialização por meio de diversas apropriações ou acréscimos tecnológicos. Afinal, nosso momento biopoderoso é o do regime farmacopornográfico ou farmacopoderoso, seguindo o rastro conceitual de Paul Preciado, dissimulando o artificial como natural, o que se torna fundamental para compreender a justaposição dos regimes soberano, disciplinar e biopolítico pelo regime farmacopornográfico com a incorporação tecnológica alucinatória que se faz corpo ultraconectado e “tecnovivo”, um campo protético que possibilita compreender, ainda segundo Preciado, como que, ao se converter as subjetividades em moléculas sintetizadas, consumíveis e comercializáveis, converte-se também o que se entende por psiqué, libido, consciência, feminilidade, masculinidade, heterossexualidade e homossexualidade, tornando tangível os marcadores identitários como produtos vendáveis. O nível coercitivo mecânico dos Oitocentos relativo aos movimentos, aos gestos, às atitudes, à celeridade do corpo ativo sofre sobreposição da disciplina e da formatação dos elementos (bio)tecnológicos de controle até seu desenvolvimento farmacopornográfico.
Os corpos paralímpicos podem, por seu turno, estabelecer uma relação mais reflexiva com as condições biopoderosas que têm sido desenhadas atualmente, resgatando alguns aspectos socioculturais do status antropológico que, como afirma Bruno Latour, não está subjugado ainda por uma drástica mudança tecnológica. Por exemplo, ao contrário do que alguns transhumanistas pregam, o corpo ainda morre. Estabelecer, reitero, uma relação mais reflexiva em nível histórico-político que abra o horizonte de um governo de si consciente e, portanto, crítico, em busca de uma áskesis, de um ethos, de uma postura, filosofia ou estética da existência que, na recuperação do humano, ressignifique seu saber, posto que Foucault define o corpo como uma “superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do EU (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização”. O corpo é utópico, maleável, mutante, mas não somente pela via da concepção reguladora farmacopolítica no contexto das novas tecnologias do corpo, da informação e da comunicação. O corpo é mutável porque sonha com novos espaços de desintoxicação, de ausência de poder coercitivo, com novos espaços de voz, de revolução. Sonha com uma utopia totalizante (não totalitária) crítica, de integração imaginativa e lúdica, sem neutralizar as indeléveis diferenças. Utopia que o jogo pode sugerir, oferecer ou evocar. Talvez uma espetacularizada utopia Übermensch não seja a mais potente, posto que hoje poderia ser mais facilmente cooptada pelas programações da governamentalidade neoliberal. Mais potentes seriam as utopias “menores”, ou as de uma performance de totalização que se desviassem do crivo do heroísmo comercializável (barato ou caro).

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