GENTES DO MUNDO

Infelizmente, a camiseta da CBF e, na verdade, a que remeta a cores e à figura da bandeira nacional acabou ficando associada, pelo campo chamado de “progressista”, a todo o reacionarismo sociopolítico que vigora no país. Mas conceitos como o de nação e de povo não são (ou não deveriam ser) lidos com ingenuidade histórica. Nação é uma comunidade humana (imaginada) que possui traços comuns, tais como idioma, território de ocupação e manifestações culturais, e que se submetem a uma mesma instituição governamental, isto é, um Estado. Nesse sentido, a nacionalidade corresponde ao sentimento de pertencimento a uma determinada nação. No mito nacionalista há a projeção de integração na qual os conflitos e as descontinuidades do tecido social se veriam, mesmo que apenas de modo imaginário, conciliadas. Mas o mito nacionalista, como vemos, pode adquirir trejeitos de violência implícita e explícita, um deles sendo aquilo que passamos a chamar mais comumente de polarização, principalmente no campo político, ainda que a pertinência dessa definição tenha passado por desentendimentos e equivocadas evocações. De qualquer modo, é a reação do nacionalismo perante as instâncias não subalternas, que não desejam conciliação. Tal reação é, na verdade, uma reação de ódio ressentido perante a impossibilidade da conciliação imaginada.
O conceito de povo, por seu turno, é cada vez mais ambíguo, fluido, nuançado, próximo de um significante vazio, isto é, atualizado a partir de cada contexto, sem qualquer fixidez “taxonômica”, assim como também, já podemos afirmar, talvez, o conceito de democracia. O paramarxista Walter Benjamin via no conceito de povo alemão o perigo da mobilização nazista, hitleriana, como uma espécie de memória afetiva e mesmo auditiva, uma assombração afetiva e auditiva que envolvia o Volk. Por isso mesmo, o título de sua obra “Deutsche Menschen” e a primeira tradução brasileira como “Gente Alemã”. As memórias auditiva e afetiva (para dizer com Jeanne Marie Gagnebin) são, assim, dissociadas.
Em um evento esportivo competitivo como as Olimpíadas, as disputas entre nações e entre povos se dão (ou deveriam somente se dar, apesar de sempre existirem algumas ocorrências em outro sentido fora dos estádios) no âmbito da inventividade do jogo, nas relações culturais fundamentais com o homo ludens (para dizer, nesse momento, com Huizinga), na absorção intensa e total de uma atividade livre e prazerosa, ainda que o prazer de um esportista de alta performance advenha (paradoxalmente?) da mais pura exaustão. O espírito olímpico reforçaria, no imaginário, o objetivo conciliador não só de cada nação, separadamente, mas, ao mesmo tempo, e em um plano ainda mais simbólico e utópico, da totalidade das nações em nome da liberdade da cultura do jogo. Toda conciliação tem sua parcela de construção ideológica, e muita construção ideológica tem sua parcela de idealização (e “idilização”) da realidade. De qualquer modo, antes uma ideologização/idealização por meio de uma inventividade lúdica da cultura.
Tenho uma proposta relativamente simples: a de que, no interior dessa inventividade e liberdade lúdica perpassada pela ideologia da conciliação utópica, chamemos nosso povo de gente. Gente brasileira, minha gente brasileira, nossa gente brasileira… E mesmo gente do mundo. Ou gentes (sim, aqui, no sentido de povos, o substantivo “gente” pode ser pluralizado, apesar de resistência por parte de alguns resistentes que não sabem ao certo ao que linguisticamente resistem)… Por que proponho isso? Para variar, para que povo seja uma instância um pouco mais… concreta? Para que não tenha um ou outro vínculo afetivo porventura negativo, assim como nação. Digamos: gentes de todas as partes do mundo. Ou pessoas. Pessoas de todas as partes do mundo… Puro nominalismo? Não creio que permaneça nesse nível. Nomes têm ressonâncias históricas e semânticas. Não somos alemães, porém nas Olimpíadas não somos somente brasileiros. Como brasileiros, o que podemos dizer é que passamos por uma ditadura político-empresarial, ora ou outra evocada com nostalgia e orgulho por alguns, com diferentes cargos, inclusive políticos. Que a utopia conciliadora totalizante (não totalitária) ao menos idealize o esboço do comum, dos comuns, e desmistifique, em sua idealização crítica, se assim possível, alguns nomes, algumas nomeações, interpelações.

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