Nessas Olimpíadas, os atletas estarão duplamente regrados. Além de atenderem às expectativas exigidas pelas regras concernentes a cada modalidade esportiva, terão de seguir as novas “regras”, ou melhor, medidas preventivas contra a Covid-19. O desafio é duplicado, e além de vencerem as provas, terão de vencer a doença e a morte. Aqui seria pertinente, evocando uma ambientação expressionista, simulacrar a batalha de xadrez do cruzado interpretado por Max Von Sydow contra a Morte no filme “O Sétimo Selo”, apesar de o xadrez ter suas próprias Olimpíadas e ainda estar pleiteando sua inclusão nas Olimpíadas parisienses em 2024, já que nestas, de Tóquio, não conseguiu. O máximo que conseguiu foi evento de exibição nas Olimpíadas de Sidney. Enfim, os atletas batalharão com regras para enfrentar as regras da vida e da morte.
As regras de cada modalidade esportiva têm como uma de suas funções controlar a violência, mas levando em consideração o fato de que, no geral, os esportes seguem “tendências e sensibilidades simbólicas que têm a ver, obviamente, com o maior ou menor investimento que fazemos nas relações sociais, nos processos de conter a violência sem sermos violentos”, como afirmam Gabriele Adabo e Michele Fernandes Gonçalves no artigo “Esporte e Violência: o Jogo entre Regras e Convenções Sociais”. As medidas sanitárias têm como função, por seu turno, assegurar a saúde e a vida, ou seja, controlar a morte, mas também, segundo alguns filósofos e sociólogos, assegurar um novo paradigma biopolítico “totalitário”, que fortalece o poder soberano, decretando um novo teste de funcionamento da exceção. Em miúdos, a contraface do estado de emergência seria a normalização da emergência (da exceção) como novo estado.
Independente dos radicalismos de pensamento de um ou outro filósofo, estamos falando de controle(s), e de como tal(is) controle(s) podem agir perante a liberdade lúdica que caracteriza o jogo, a ativação do homo ludens em sua mais plena prática. As regras das modalidades jogam com a fundamental liberdade que o esporte possibilita. Na verdade, sem tais regras, esportes não existiriam e sua intestina liberdade também não. As regras esportivas garantem um senso, uma noção de liberdade, de jogo. As novas regras, isto é, as medidas preventivas é que são um agregado que complexificará ainda mais a noção de liberdade, pois sem tais regras não há liberdade de execução dos jogos do evento, não há a liberdade de poder jogar com chance de sobrevivência e saúde, ou seja, não há a única liberdade possível no contexto do aprisionamento, porém tais regras podem dificultar a liberdade natural dos gestos, dos contatos, do vaivém inerente ao mundo dos eventos de grandes proporções e dos esportes em geral. Podem, também, dificultar o estado psicológico dos atletas, que disputarão com a morte. O medo, a morte. Voltamos a Bergman, que observa cadavericamente nossa necrópolis empesteada, nossa terra devastada. #SomosTodosMaxVonSydow poderia ser a olímpica hashtag em sua versão, digamos, “cult” ou cinéfila, além de uma homenagem. Todos os adversários são a morte, esse metamorfo de mil faces. Por fim, as medidas podem dificultar, mais uma vez, a condição psicológica dos atletas devido à ausência de público, posto que a capital japonesa entrou em sua quarta fase de emergência para conter a variante delta do vírus. A ausência de público olímpico é inédita. Portanto, o desafio dos atletas é inédito.
A morte sempre vence, pois é impossível derrotá-la. Não obstante alguns transhumanistas um tanto iludidos, nossa configuração antropológica não sofreu mudanças suficientes para superar a constituição de seres mortais. O que se pode é adiar a chegada do extremo momento, seja por meio de medidas sanitárias, da arte ou dos jogos, sendo mais acentuadamente os dois últimos fenômenos as estratégias que nos envolvem em uma consciente ilusão (ou cínica ilusão, para sermos mais contemporâneos) de eternidade. Nos cuidemos e joguemos, pois, com a dignidade de quem sabe que morrerá e mesmo assim busca algum quilate ilusório de eternidade.
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Carlos Eduardo Marcos Bonfá
Carlos Eduardo Marcos Bonfá nasceu em Socorro/SP em 1984. É professor de literatura, Leitura e Produção de Texto em EFII, EM e em faculdade do setor privado, com doutorado (e estágio de pós-doutoramento) em Estudos Literários pela UNESP. É colaborador da revista “Mallarmargens”.
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