Quando soube que as medalhas para as Olímpiadas de Tóquio iam ser feitas da reciclagem de celulares antigos, imaginei um amálgama de metais, plásticos e fios com a aparência de um biscoito de arroz. Um a um pintados de ouro, prata ou bronze. Guardei esta imagem singular e só ontem, com a abertura oficial fui atrás da notícia completa. Viajei demais na imaginação e as medalhas de um evento mundial não podiam mesmo parecer um trabalho escolar com sucata. Elas continuam seguindo a tradição dos metais e sua escala de valores.
Os responsáveis pela reciclagem não usaram os aparelhos completos. Eles extraíram dos dispositivos apenas porções mínimas de ouro, prata e bronze porque dentro do gadget, que hoje é quase um órgão humano, o que existe de verdade é uma porção ínfima de cada metal. Foi como tirar os dentes de ouro do defunto, com a diferença de que o corpo se desfaz e os restos dos seis milhões de aparelhos usados ainda vão precisar de um destino. A conta seis milhões é bem grande e corresponde à quase a metade da população de Tóquio. Muitos aparelhos descartados de muita gente. Espero um dia saber o que fizeram das carcaças desprovidas dos metais.
Para esta Olímpiada foram produzidas 5 mil medalhas que têm 8,5 cm de diâmetro, quase o mesmo tamanho de uns biscoitos de arroz que se encontram no mercado. As de ouro pesam cerca de 556 gramas e as de prata e bronze, respectivamente, em torno de 550 a 450 gramas. Dos aparelhos, foram retirados trinta quilos do metal dourado, 4 mil quilos de prata e 2700 quilos de bronze. Num quadro de medalhas, os celulares seriam campeões na prata e, se estou certa nas contas, o ouro dos aparelhos corresponde a cerca de seis por cento do total utilizado. Acho pouco, mas é importante valorizar a iniciativa mesmo aparentando uma atitude mais simbólica que ambiental.
Muito do que acontece nos Jogos Olímpicos vem carregado de valor simbólico, a começar da ideia de união entre povos. A gente gosta de ver o espírito esportivo acima das competições, mas sabe da exigência individual às vezes sobre-humana nos treinos e do uso político que cada país faz das vitórias. Somando isso ao momento cheio de contradições desta pandemia, a gente também sabe o quanto ainda está longe do ideal olímpico criado pelo barão de Coubertin lá no século 19.
Nestes Jogos Olímpicos pandêmicos, a entrega de medalhas será feita numa espécie de self-service sem apertos de mão, abraços ou cabeças curvadas para a recepção do prêmio. Será o próprio atleta que pegará a medalha para então vestir o pescoço. Usando máscaras, muda também a tradicional mordidinha pra conferir o ouro.
Com mordidinhas ou não, ainda prevalece o valor e o simbolismo dos metais. Com os ideais olímpicos bem longe de serem atingidos e a bandeira da pandemia, balançando com um vento de medo e culpa, vai faltar a espontaneidade para uma comemoração completa. Minha vontade de torcer não morre. Só acho que uma comemoração completa, completa mesmo, vai acontecer no dia em que as medalhas puderem ser , de verdade e sem exibicionismo, uns biscoitos de arroz pra morder com gosto.