Abertura de grandes eventos sempre gera polêmica, mas, até um tempo atrás, em torno da beleza. No máximo se falava em ter chovido no molhado, quer dizer, num evento como o das Olimpíadas, quando o país conta um pouco de sua história, explora sua cultura, isso aconteceria se o show só mostrasse o óbvio. No caso da França, seria, por exemplo, explorar apenas o can-can ou, de forma linear e tosca, a rica herança da revolução francesa.
Hoje, em um mundo conflagrado, de intensa disputa ideológica, a briga é outra. Discute-se a beleza e a intenção política. Isso não é ruim, mas encontra, entre os combatentes, extremistas e fundamentalistas de toda sorte. Os extremistas – quiçá nostálgicos dos tempos colonialistas – chiam porque uma negra, a franco-malense Aya Nakamura, canta e dança com a guarda republicana e outra negra, Axelle Saint-Cirel, canta o hino nacional.
Os fundamentalistas, por sua vez, condenam (quem sabe não sonhem com a volta da santa inquisição) a cena em que drag queens sentaram-se à provável mesa da santa ceia. O diretor artístico, Thomas Jolly, segundo O Globo, disse que sua inspiração estava não na cena cristã, mas no Olimpo, espaço ocupado pelos deuses gregos, que, ao contrário do católico, se apaixonavam, traíam, procriavam-se e guerreavam por amor.
A associação óbvia da cena é o quadro de Leonardo da Vinci, pintado no século XV, e intitulado “A última ceia”, mas há os que apontam o dedo para dizer que a ligação entre o que se viu nas Olimpíadas e o quadro é pura ignorância. Seriam outras obras a servirem de inspiração à cena, em particular o quadro “A festa dos deuses”, de Jan Van Bijlert, uma representação do casamento entre Tétis e Peleu. Para reforçar o argumento, este quadro estaria na França, enquanto o de da Vinci, na Itália.
Sobre essa polêmica, digo o seguinte: a associação imediata e óbvia com o quadro de da Vinci é justificável, mesmo que incorreta, haja vista que é uma obra que todos nós temos em mente. Mas concluir daí que a cena é ofensiva é pura rigidez. Não nos esqueçamos que Cristo andava justamente com “essa gente” – se não eram as drag queens (sabe-se lá se não eram, se já não existiam), eram as prostitutas. Além do mais, o papa Francisco tem dito que a igreja é de todos, espaço de acolhimento. É um evento esportivo, minha gente, é preciso flexibilizar o corpo e a mente.
O que se viu na França foi uma abertura política, presente, inclusive, na ceia com as drag queens. Jogou-se luz em um país inclusivo, aberto, sem preconceito, o oposto do que a direita, que quase levou a última eleição, quer. Isso sem deixar de realçar a cultura, que, claro, não é pequena. A literatura, as artes plásticas, a dança, enfim, nada ficou fora do espetáculo.