Upa, cavalinho

O acaso junta, no Largo da Carioca, o maltratado e o maltrapilho. O primeiro tem levado uns coques do cotidiano, uns beliscões da vida profissional, uns não-me-toques do amor. As finanças vão no mesmo ritmo, apesar da roupa nova, da camisa de grife.

O maltrapilho, não é de hoje, transita na estrada dos derrotados. Abandonou a família e o emprego, minto, depois de poucas e boas, foi demitido e abandonado pela família. Sua vaidade é tomar banho diário, ainda que viva na rua. O sabonete – do qual não abre mão e por ele é capaz de tudo, inclusive surrupiar algum de uma farmácia com funcionários distraídos –, é seu luxo.

O maltratado ainda tem muita gordura para queimar, enquanto o outro resiste sabe-se lá graças a qual milagre. De todo jeito, se tivessem uma chance, poderiam ser amigos. Exagero, mas uma boa conversa travariam se o destino assim o permitisse. A derrocada de um poderia minorar a do outro, quem sabe fortalecer a ambos.

Mas não serão amigos, nem conversarão. Quer dizer, conversarão, sim, mas não assuntos sensíveis e pessoais. O acaso que os junta, também impõe o assunto: as Olimpíadas.

O maltratado encostou a barriga no balcão do Sucos Real, pediu um café. Por mero acaso, acompanhava em seu celular uma matéria sobre hipismo. Nos jogos olímpicos, o Brasil vai disputar as três modalidades: salto, adestramento e concurso completo. O maltrapilho se posicionou um pouco atrás do maltratado e, como era fã do esporte, filou a matéria.

O maltratado se assustou com o sujeito quase colado a suas costas.

— Ei, o que é isso? Sai pra lá.

— Fique tranquilo, moço, sou estou acompanhando a reportagem. Sou louco com esse esporte.

Refeito do susto, o maltratado deu sequência à conversa, como se fosse a coisa mais natural.

— O Brasil vai disputar todas as categorias.

— E eu não sei? A gente sempre está lá. Tem a família Pessoa, só craques.

— É?

O maltratado era desligado. Na realidade, não ligava muito para esporte, dizia-se torcedor do América só para não deixar de responder quando lhe perguntavam para qual time torcia. Olimpíada, então, não acompanhava. Muita coisa ao mesmo tempo, um monte de esporte cujas regras ele não tinha a menor ideia de quais eram.

— O senhor sabe que o hipismo está nas Olimpíadas desde 1900?

O maltratado, naquele momento, olhou direito o sujeito. Parecia um pobretão, apesar de limpo, com uma roupa surrada, mas apresentável. Talvez fosse uma pessoa mais feliz que ele, foi o que lhe ocorreu do nada.

— E como o amigo sabe tudo isso?

— Ué, eu acompanho. Gosto das Olimpíadas. Os cavalinhos, então, me fazem lembrar da infância no sítio de meu avô, na realidade um pedacinho de terra lá no raio que o parta. Ele tinha uns pangarés ruins de sela toda vida.

— O esporte aí é pra grã-fino.

— Ô, se é, vai ser disputado no Palácio de Versalhes. O senhor já foi lá?

— Fui não. A vida anda difícil.

— Se a vida anda difícil pro senhor, imagina pra mim. Aliás, sem querer abusar, o senhor não me pagaria um pingado e um pãozinho na chapa?

O maltratado se ajeitou para dizer não, mas as palavras escapuliram contrariando sua vontade. O celular foi posto em cima do balcão, os dois homens ficaram lado a lado. O maltratado bicava seu café, o maltrapilho molhava seu pão no pingado e, em vez de morder, chupava aquilo que já não era pão nem passou a ser leite com café.

— Engraçado que o time é formado por homem e mulher.

— E cavalos e éguas.

— As pessoas não podem ter menos de dezoito anos.

— Os animais não podem ter menos de oito.

O maltratado repetia as informações da matéria, o maltrapilho acrescentava as que sabia. Outros dois cafés foram comandados. O maltratado não estava mais na prateleira de cima da vida, da qual despencava, tampouco o maltrapilho no fundo do poço, de onde não sairia. O esporte – elitista, sim, mas que acontece no lombo de um cavalo, esse bicho que ajudou o homem a conquistar o mundo –, aproximou momentânea e superficialmente dois homens. É pouco? É, mas também não é.

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