Ondas de Paris

A partir de uma treta que atinge o surfista Filipe Toledo, bicampeão mundial, o jornalista Adrian Kojin, na revista Piauí, faz um bom apanhado do esporte, que transformou, em pouco tempo, o Brasil em potência. Hoje somos campeões olímpicos, título obtido por Ítalo Ferreira, em Tóquio, quando o esporte entrou na competição.

A treta é a seguinte: nosso surfista, na primeira etapa do Circuito Mundial de Surfe, abandonou a competição em Pipeline. Pipeline, no Havaí, e Teahupo’o, no Taiti (onde serão disputadas as provas do esporte nos próximos jogos olímpicos), são as praias em que são encontradas as ondas de consequência. O que é isso? São as ondas perigosas, capazes de provocar um acidente que, no limite, pode ser fatal. Nosso atleta, ao evitar o mar de Pipeline, deu margem a ser chamado de covarde, a despeito de já ter se metido em outras ondas igualmente perigosas e de não abrir mão de ser um dos selecionados brasileiros para a próxima olimpíada, que, como eu disse, ocorrerá numa praia em que o perigo nada ao lado.

No mencionado artigo aprendi também que há duas modalidades de surfe. Essa do circuito e aquela que acontece nas praias de ondas enormes, como em Nazaré, Portugal. Quem disputa uma delas, dificilmente disputa a outra. É como o futebol nosso de cada dia e o americano, dois esportes diferentes.

O que quero mesmo comentar aqui é uma outra coisa e tem a ver mais com leitura e devaneios do que com esporte. Como todos sabem, as leituras são influenciadas pela bagagem que carregamos, constituída de vivências e sabedorias – ou ignorâncias. Carregamento esse que nem sempre obedece a um caminho reto, racional. Há muito de delírio na leitura.

Pois essa matéria me fez parear duas figuras tão diferentes entre si: a escritora Maria Valéria Rezende e o multimilionário Jorge Paulo Lemann, um dos sócios da Americana, empresa que anda às voltas com uma tremenda treta, mais séria que um simples recusar a entrar em mar revolto. Mas vamos a como liguei Maria Valéria Rezende, que não está na matéria, e Lemann, que está.

Segundo nos conta Kojin, o surfe no Brasil começou em Santos. Em 1930, um americano, filho de empresário ligado ao comércio do café, construiu a própria prancha e, na companhia da irmã, passou a surfar no mar santista. Logo depois, na rabeira dos estrangeiros, três brasileiros, Osmar Gonçalves, João Roberto Suplicy e Silvio Malzoni, começaram a praticar o esporte, ainda que de forma amadora. Mais tarde um pouco, o surfe ganharia solidez nas águas do Rio de Janeiro.

Esse pioneirismo de Santos traz Maria Valéria Rezende à crônica – ou a minha leitura da crônica. Não sei dizer se ela chegou a surfar, o que não duvido, pois quem a conhece sabe quão aventureira ela é. Mas a questão não é essa. Já ouvi em mais de uma vez a autora de livros memoráveis – “O voo da guará vermelha”, “Quarenta dias”, “Vasto mundo”, “Carta à rainha louca”, entre outros tantos, inclusive infantojuvenis – falar que Santos, sua cidade natal, era privilegiada. Tendo um dos portos mais importantes do país, se não o mais importante, a cidade era bastante movimentada, inclusive culturalmente. Ela conta, por exemplo, de companhias de teatro e óperas que, por desembarcarem na cidade, acabavam fazendo apresentações em seus teatros, antes ou depois de ocuparem os palcos do Rio de Janeiro e de São Paulo. A presença do surfista americano – justificada pelo comércio de nossa principal commodity no início do século XX – exemplifica essa efervescência.

Já o multimilionário foi um surfista. Pelo que aponta a reportagem, um dos melhores de sua época, quando o esporte engatinhava no país. Aliás, é o próprio empresário que se qualifica como tal. Num trecho de uma palestra disponível na internet, reproduzido na matéria, sua experiência no surfe – superdimensionada por ele, que chega a dizer que deslizou em ondas de até doze metros, o que não é verdade, no Brasil não temos assim tão grandes – vira um discurso de coach, receita de vencedor.

Miro Paris, com binóculos no Taiti. Vamos torcer por nossos rapazes e moças – Filipe Toledo, Gabriel Medina, João Chianca, Tatiana Weston-Webb, Luana Silva e Tainá Hinckel – enfrentarem bem e em segurança as perigosas ondas. Torcer mais ainda para que, no futuro, escrevam livros, se for o caso, mas sem a chatice de deitar sobre leitores receitas de sucesso. Tentem um poema que fale de como é estar dentro de uma onda. Eu seria um leitor entusiasmado, apostando na beleza. Nesse sentido, Maria Valéria pode ajudar mais que Lemann. Ela escreve bem, ela sabe dimensionar a literatura, ela não tem receita nenhuma de sucesso, ou seja, sob a orientação da premiada escritora, surfistas do Brasil, é possível que vocês deixem, além dos voleios nas ondas, o registro de uma experiência humana desconhecida pela maioria da população. Ah, Filipe, inclusive – e principalmente – quando essa experiência vem carregada de insegurança.

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