Como é que isso tudo começou?

Os jogos olímpicos e seus recordes me deixam estupefato, já os paraolímpicos (1), vexado. Confesso que a vergonha passa à medida em que penso como a humanidade, entre tantas aberrações, tem seus momentos de esplendor. A pessoa que tem alguma deficiência e se torna atleta é um deles.
Chico Buarque tem aquela música que brinca com os antigos almanaques, publicações com pequenos textos versando sobre tudo. Me lembro especialmente dos que ficavam disponíveis em consultórios médicos e farmácias. Na música, o cantor pede que lhe digam “quem foi que inventou o analfabeto e ensinou o alfabeto ao professor”. Ter dúvida sobre como se deu uma descoberta, um achado, por mais ingênua que seja, está no princípio da evolução.
Uma vez fui a uma grande loja de discos, no Rio de Janeiro. Ela não existe mais, assim como não existem mais lojas de discos, a não ser uma ou duas por aí. Enfim, naquela loja, um pequeno paraíso em Copacabana, comprei uma ferramenta de rasgar o plástico que protegia os CDs. Não sei se você é do tempo do CD – quem diria que o CD já está sumindo –, mas, quando bem tratados, viam embalados e essa embalagem era difícil de romper. Pelo menos eu, um desajeitado, sofria com aquilo. A ferramenta – uma lâmina bem planejada por um designer – veio a calhar. Tanto é assim que, ao pagar, brinquei com a caixa que estávamos diante do segundo maior invento da humanidade. A moça caiu na minha e perguntou qual seria o primeiro. O papel higiênico. No alto da minha ingenuidade – e abraçado à minha ignorância – me pergunto como foi que alguém olhou uma árvore e pensou que daquela casca chegaria ao papel e ao papel higiênico. O ser humano é genial.
É genial, mas essa genialidade custa vidas. Não só inventamos armas poderosas, como derrubamos montanhas, poluímos rios, podamos florestas para produzi-las. Igualmente devastamos meio mundo para produzir a ferramentinha de rasgar o plástico que protege a capa, também de plástico, que protege o CD, também de plástico, que guarda uma canção que um dia Chico Buarque, talvez insone, escreveu. “Ô menina vai ver nesse almanaque como é que isso tudo começou”.
O fato é que aquela ideia meio desajuizada de um mutilado apostar corrida com outra pessoa nas mesmas condições, um desafio que um fez ao outro num descampado perto de suas casas, floresceu. Demorou um tempo, alguém olhou para eles e pensou em desenvolver uma prótese para auxiliá-los. Hoje temos atletas que voam, simplesmente voam, apoiados em estruturas de fibra de carbono ou titânio. E cegos jogam futebol, e cadeirantes lançam dardos. Se um dia realmente tivermos de nos sentar diante de Deus e ter de lhe contar uma boa história de nossa passagem por aqui, essa será uma delas. Essa e a criação da poesia. Essa e a criação da música. Essa e a produção da ferramenta para romper o lacre dos CDs. Não sei se ocultar as guerras, a poluição, a fome vai servir de alguma coisa, já que estaremos diante Dele, mas para que enumerar aquilo que tanto nos envergonha?

(1) No site da Academia Brasileira de Letras, em Nossa Língua, ao consultar o termo “paraolímpico”, lemos “paralímpico é má-formação vocabular”. Fica a dica.

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