Ainda posso sentir. É uma sensação potente. Uma experiência que me atravessou e deixou marcas. A brisa do vento parecia mais forte do meu ponto de vista do que dos meus amigos. Eu estava no ponto mais alto e o hino nacional ecoava em minha cabeça. Não conseguia ignorar os olhares para o símbolo que resplandecia em meu peito, revelando minha conquista, minha superação, consequências do meu empenho. Superei a mim, ao mesmo tempo em que deixei todos para trás, na somatória dos pontos. A tampinha dourada, que um dia fora usada como parte de uma garrafa de Skol, agora, amarada com fita azul, foi responsável por me colocar em pé, sobre um balde, em posição de destaque.
As disputas foram intensas para que eu pudesse alcançar o direito de ser dono dessa medalha olímpica. Mas antes do seu início, muito tempo foi gasto na preparação. Transformar uma casa em sede dos Jogos Olímpicos exigiu muitos de mim e dos demais amigos, verdadeiros engenheiros lúdicos. Nós tínhamos um desejo provocado pelo mundo real, e consequentemente, uma meta a ser satisfeita. Os Jogos Olímpicos, que empolgavam os adultos, a ponto de ver meu pai e minha mãe deixarem escapar sorrateiras lágrimas devida a uma simples vitória de um brasileiro na corrida, precisava de um concorrente à altura.
Levou algum tempo, a preparação: a construção dos espaços de disputa, arenas, quadras, campos, pistas, o desenvolvimento de todas as provas e, por fim, a premiação. O tempo foi tanto, que não sei precisar o quanto, mas posso afirmar que foi rigidamente cronometrado pelo deus Kairós – que regula, como ninguém, o tempo da oportunidade.
Foram muitas as modalidades que exigiram sobremaneira de nosso divertimento. Disputa com bolinhas de gudes (burquinhas) nas provas de matança e triângulo; arremesso de pião para, em seguida, contar o tempo até que ele parasse na roda; jogo de futebol de botão; quantidade de pulos na corda coletiva e individual; tiro ao alvo com as mãos e com o estilingue, entre outras… Mas as provas que mais facilmente emergem da minha memória são as de corridas, saltos e arremessos.
A casa era envolta por corredores laterais e no fundo, e, quando deixávamos os dois portões dos corredores laterais abertos, a pista de atletismo se completava, pois, a frente da casa era recuada. Em nossa quadrada pista de atletismo, me revelei para mim mesmo – e apenas para mim até os dias de hoje. Descobri o prazer e a alegria indescritível de me sentir desafiado, não pelos outros, mas com os outros. Corríamos contra o tempo na distância de uma lateral, uma lateral e o fundo, uma volta na casa, duas voltas na casa, 7 voltas na casa e, por fim, a prova mais difícil 15 voltas na casa.
Lançamos cabos de vassoura. Arremessamos um saco de pano com areia. Usamos o bambu, que servia para erguer as roupas penduradas no varal, como uma catapulta que nos impulsionavam e possibilitavam saltar a cadeira em posições variadas. Saltamos altura para aterrissarmos em dois colchões velhos… Uma das sensações mais prazerosas que carrego comigo até os dias atuais foi resultado dos meus esforços em aprender a coordenar o ritmo da minha corrida com o salto sobre uma sequência de vassouras apoiadas, cada uma, por duas cadeiras. Indescritível, a percepção do meu corpo plainando ao compasso de passos velozmente ritmados. A prova, porém, que me deixou marcas indeléveis foi o salto em distância no corredor de cimento. O ralado foi inevitável, mas a satisfação, mais ainda.
Minhas memórias mostram que os Jogos Olímpicos da minha infância não perdem em nada para os Jogos Olímpicos que hoje assisto, com sono, na TV. Na infância, no mundo do jogo, pude me sentir mais rápido, mais alto e mais forte, e arrisco dizer que me sinto tão feliz e realizado quanto um ou uma atleta que alcançou seu objetivo, por meio do seu empenho e desempenho, no ‘mundo real’. A medalha ainda está perdurada na parede do quarto, que um dia foi meu. Quando visito meus pais e a vejo, dificilmente consigo evitar um sorriso de canto, mas não exatamente por um saudosismo piegas. Reconheço que, aparentemente, aquele meu feito soa inócuo e sem glamour. Para mim, no entanto, aquele objeto redondo cheira a um tipo de superação inigualável.
Tive uma glória olímpica para chamar de minha.
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Alcides Scaglia
Como a maioria dos meninos brasileiros, sonhou em ser jogador de futebol. Correu tanto atrás do sonho e da bola que alcançou seu objetivo. Mas acordou, ou melhor, foi acordado. Fez faculdade, mestrado, doutorado, se tornou livre-docente, professor e pesquisador da UNICAMP... contudo quando dorme quer continuar o sonho. O mundo real não deixa voltar, logo escreve, tentando encontrar um outro caminho para voltar ao jogo, à terra do sonho, onde a bola, as luvas, a grama, ditavam a dimensão do sentido.
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