Quando Daiane dos Santos saltou para o ouro no solo de Anaheim (USA), a travessa Rebeca Andrade dava seus pulinhos no chão de dona Rosa. Levada para fazer um teste em um projeto social da prefeitura de Guarulhos (SP), ouviu da treinadora responsável em tom de brincadeira: “Uau! essa é a futura Daiane dos Santos!”
O “Brasileirinho de Daiane” abria não apenas os olhos de profissionais, mas as lentes do mundo para as possibilidades de um país periférico na ginástica artística. Pela primeira vez um time de ginastas brasileiras garantia vaga numa olimpíada. Ao berço íamos nós: Atenas 2004. Claro que a equipe não seria páreo para as nascidas em centros de tradição como a Romênia e os USA. No entanto, o tempo era promissor. O trabalho de base na modalidade ganhava fôlego e a beleza dos espetáculos trazia popularidade. E, talvez o mais importante: uma menina negra, vinda da periferia, ensinava ao mundo que aquele palco também era para meninas de sua cor. Só anos depois, nele brilhariam Gabby Douglas e Simone Biles.
Enquanto isso a pequena crescia naquele ginásio que a acolheu e a levava para torneios infantis como um interclubes em Cuba, quando “ir para Cuba” ainda não significava xingamento. No mesmo tablado também conheceria as estrelas Daiane e Laís Souza em um treino. Gostou de ter seus pequenos erros corrigidos pelas grandes. Um contato simples que cria referências. Os olhos meninos descobrem que medalhistas são de carne e osso e treinam duro todos os dias. Não tardaria a encontrar sua vaga em um lugar de excelência ainda que isso significasse viver longe da ex-empregada doméstica Rosa, sua mãe.
Fora dos centros e longe do milionário futebol masculino só bons resultados atraem os clubes e todo o aparato multidisciplinar de preparação. De posse disso, os periféricos ocupam os pódios, podendo enfim se igualar aos bem-nascidos. São muitos os exemplos, quase sempre citados romanticamente como heróis. Sim, são heroínas por suas superações individuais, porém não podemos esquecer que, em sua maioria, são produtos de projetos sociais de iniciação esportiva que deveria estar presente na educação básica. Cabe então perguntar: quantas rebecas perdemos por não ter alguém que segure as suas mãozinhas e reconheça em seus movimentos uma futura atleta?
Aterrissemos em Tóquio 2020, no difícil ano de 2021 e na motivação desta crônica. Um funk da periferia de São Paulo anima a coreografia cuja nota levaria sua executora à final olímpica no Individual Geral e a uma medalha de prata. A segunda melhor ginasta do mundo é brasileira e negra. E isso ainda não é tudo. A olimpíada segue e nossa pequena estrela ainda disputará mais duas finais. Não me parece ter sido à toa a sua escolha musical.
Escuto MC João, em arranjo para violino. Não sou do funk. Confesso que a vulgaridade das letras às vezes me irrita. Escuto J. S. Bach. Escuto a mixagem. Meus dedos se apressam e decidem não esperar os próximos passos. Escrevo: Rebeca Andrade já é campeã. Dois títulos duelam na minha mente. Opto pelo primeiro, viro de ponta-cabeça e coloco o segundo antes do ponto final. Eis: O salto de Rebeca, filha de Dona Rosa.