O filho de Vera Mossa

O site no ar, o futebol em campo e eu cheia de urticária esperando a abertura oficial dos jogos olímpicos de Tóquio. A velha mania: gosto de começar pelo começo!

Pois bem, a pira olímpica está acesa e já brilham as primeiras medalhas.

Por falar em fogo, também gosto dos pequenos detalhes. São eles que acendem a chama em mim. O primeiro deles: estamos assistindo a Olimpíada Tóquio 2020 em julho de 2021 porque uma coisinha invisível entristeceu e ameaçou a vida, levando os humanos a rever suas agendas, negócios e políticas.

Foi ver a coreografia dos aros de madeira e sentir o crepitar. Ali se depositam diversas simbologias de um povo que tem o olho no futuro sem esquecer de reverenciar o passado. No passado, dezenove anos depois de sofrerem os efeitos devastadores da ciência a serviço de uma guerra, se apresentaram como sede de jogos que tentavam unificar o mundo ainda dividido. Reconstruídos e prontos para mostrar o lado bom dos avanços científicos e tecnológicos. O ano era 1964 e, pela primeira vez, satélites levavam as imagens de jogos olímpicos para dentro dos lares em todos os continentes. De olho no futuro, pediram às delegações que levassem sementes naturais dos seus territórios. Plantaram. Cinco décadas depois, num ano controverso, exibem a colheita para arquibancadas vazias como a dizer: vocês todos estão aqui ainda que impedidos por um vírus.

A caixinha de lenços, estrategicamente ali do lado, cumpria seu papel quando vejo a entrada do Brasil. Quatro atletas. Modalidades e fenótipos diversos. Representantes dos trezentos e um brasileiros presentes. O recado ao mundo estava dado: esta delegação difere do negacionismo que está em curso no comando do seu país. Em sintonia perfeita com os anfitriões que ainda me fariam chorar por duas vezes: quando atletas entregaram a bandeira olímpica para profissionais de saúde e quando a tocha olímpica teve o percurso dividido entre um pós-atleta idoso com dificuldades motoras e uma atleta cadeirante. Como se isso fosse pouco, a abertura tem sua apoteose comandada por uma atleta japonesa filha de pai haitiano.

A essa altura, você deve estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com o título?

Explico. No canal em que eu assisti, se festejava a escolha do filho do grande treinador de voleibol como porta-bandeira. O pai, presente no estúdio, não conteve a emoção. Reconheço a grandiosidade dos dois, porém a minha memória voou para Moscou 1980, trazendo de lá um ursinho em lágrimas que quebrava o gelo da guerra fria. Foi ali que a grande Vera Mossa, aos quinze anos de idade, deu os primeiros passos para popularizar o voleibol feminino. Era só o começo. Fatos que costumam abalar a vida das mulheres no esporte como gravidez na adolescência, separação e um novo casamento não a impediram de, com muita determinação e apoio familiar, permanecer nas quadras retornando para as duas olimpíadas posteriores. Uma mulher bonita, em todos os sentidos, que se recusou a ter seu corpo objetificado, afirmando: “eu preferia que elogiassem o meu jogo e não a minha beleza”. Diante da realidade do nosso tempo, ao lado de outros esportistas, faz parte do movimento Esporte pela Democracia.

Pesquisei e encontrei num canal no Youtube uma entrevista de maio/2021. Ao ser perguntada sobre seu percurso de atleta a mãe/torcedora, ela falou com simplicidade e sem fórmulas prontas sobre os aprendizados do esporte afirmando que não há perfeição, afinal o jogo de vôlei se define nos erros e não nos acertos. No esporte ou na vida, ela prosseguiu, o que nos cabe é tentar ser o melhor que podemos ser.

Tudo se conecta. Nada mais representativo das duras lições deixadas pelos dezoitos meses que antecederam e marcam profundamente este evento. Falo da sensibilidade da equipe de criação japonesa e da voz dessa mãe, quase nunca lembrada. Falo de afeto e de humanidade. As bandeiras, ainda que portem a individualidade dos países representados, formam neste momento um todo com suas diversidades e imperfeições. O encaixe das peças em madeira de várias origens é que garante a harmonia dos arcos. Dentro ou fora das quadras, é preciso que cada um ofereça o seu melhor para que a vida possa pulsar plenamente outra vez.

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